sábado, 11 de abril de 2009

BAGAGEM - ADÉLIA PRADO

Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade da alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Este poema faz parte da primeira obra publicada por Adélia Prado: Bagagem: um livro de poeisas que traz referência à sua vida, às suas memórias e reflete a sua forma ver a vida, o mundo, a condição da mulher e do homem no mundo.
Faz uma intertextualidade com o Poema de sete faces (CDA ).
Veja este poema e faça as suas comparações:

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do -bigode,

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.


Observe:
O homem, por estar numa posição cômoda de privilégios sociais, não precisa lutar para modificar-se (desdobrar-se), para impor-se. A mulher, sim, precisa e desdobra-se. É desta maneira que vem construindo um destino feliz e inteligiente.
Para o homem (Carlos Drumond de Andrade) - anjo torto: destino limitado e inexorável.
Para a mulher (Adélia Prado) - anjo esbelto: destino amplo, mutável e belo.

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