Por cima do abismo estende-se minh'alma tensa como um cabo onde me equilibro, malabarista de palavras. (Maiakóvski)
sábado, 4 de julho de 2009
Lindos presentes!
Agradeço compartilhando com vocês os selos e o afeto:
O primeiro:
O regulamento é:
-Listar 7 coisas que gosta e depois indicar 7 blogs para levar o selo:
As 7 coisas que eu gosto são:
Estar com minha família;
Dar aula;
Namorar muuuuuuuuuito;
conversar e blogar;
prestar consultoria;
ler e escrever;
Meditar.
O outro selo é:
-Tenho que escrever 5 coisas que são ROXIE:
-Sobre música: Only You - de Ram / Rand
-Sobre televisão e cinema: Os filmes Ritmo Quente e o Som do Coração, os programas Provocações (TVE) e SAi de Baixo - Lembra muito meus pais.
-Sobre países que gostaria de conhecer: França, Espanha e Itália.
-Sobre cores favoritas: azul,verde, amarelo, lilás e vermelho.
-Sobre hobbies: asssistir filme, ouvir música, colecionar figurinhas com minha filha, escrever, meditar.
Eu indico:
Caldeirão de Idéias
Na dança das palavras
Mulher é desdobrável. Eu sou
Blog do Lucas Matheus
Felicidades mil!
sexta-feira, 3 de julho de 2009
25 de julho - Dia Nacional do Escritor
O dia 25 de julho foi escolhido como Dia Nacional do Escritor. A data foi escolhida por decreto governamental em 1960, após o I Festival do Escritor Brasileiro, organizado pela União Brasileira dos Escritores por iniciativa do presidente, João Peregrino Júnior, e do vice-presidente, o escritor Jorge Amado.
O escritor convence, através da verdade que imprime em suas palavras, da paixão e do desejo expressos no ritmo, nas alegorias, nas imagens e nas sensações sugeridas.
A imaginação, a ilusão, a fantasia ou o depoimento, a crítica e o ensinamento ganham vida nos sentidos de quem lê, de quem apropria-se da ideia e eterniza o escritor na sua memória.
Então proponho a vocês!
Aproveitem este mês para fazer referência aos grandes escritores, famosos e anônimos, compartilhado textos, frases, versos ou imagens. É só copiar a imagem e deixar um recadinho para que possamos visitar o seu blog.
Afinal, vocês, caros blogueiros fazem parte desta data.
Sintam-se homenageados!
"Eu continuo firmemente pensando em modificar o mundo e acho que a literatura tem uma grande importância." [ Jorge Amado ]
Amor de índio - um amor divinamente humano
Esta canção encerra reflexões valiosíssimas a respeito da nossa relação com o corpo, o trabalho, e o outro.
A relação de cuidado com tudo e todos reflete um amor incondicional, aquele cuja aurea se expande e toca a natureza, as pessoas, a vida.
Às vezes, quando estou demaisadamente voltada para o meu umbigo, fico pequenininha, feito concha do mar na imensidão da areia. Então me canso, levanto a cabeça, olho em volta e é tanto amor que não cabe em mim. Ando nas ruas a olhar para as pessoas que transitam - cada uma com seu destino, seus sentimentos, suas dores e alegrias; olho para a natureza e vejo a Divindade nela refletida. É tanta beleza que preenche a alma.
Então,façamos da nossa vida um ato sagrado de amor e sejamos na nossa imperfeição humana, divinos. Sejamos divinamente humanos!
Aproveitem e amem mais e sempre mais.
Agora escutem e cantem!
Beijos
Amor de Índio
Composição: Beto Guedes - Ronaldo Bastos
Tudo o que move é sagrado
E remove as montanhas
Com todo cuidado, meu amor
Enquanto a chama arder
Todo dia te ver passar
Tudo viver a teu lado
Com o arco da promessa
Do azul pintado pra durar
Abelha fazendo mel
Vale o tempo que não voou
A estrela caiu do céu
O pedido que se pensou
O destino que se cumpriu
De sentir seu calor e ser todo
Todo dia é de viver
Para ser o que for e ser tudo
Sim, todo amor é sagrado
E o fruto do trabalho
É mais que sagrado, meu amor
A massa que faz o pão
Vale a luz do seu suor
Lembra que o sono é sagrado
E alimenta de horizontes
O tempo acordado de viver
No inverno te proteger
No verão sair pra pescar
No outono te conhecer
Primavera poder gostar
No estio me derreter
Pra na chuva dançar e andar junto
O destino que se cumpriu
De sentir seu calor e ser tudo
quinta-feira, 25 de junho de 2009
Engenheiros do Hawai, Lima Barreto e Machado de Assis
Escutem a música a seguir e reflitam sobre as características da Teoria do Medalhão e de O Homem que Sabia Javanês, atentando para a concepção de vida, de sociedade e de indivíduo.
Aproveite e curta a música. Engenheiros despensa comentários.
Saudações Literárias
quarta-feira, 24 de junho de 2009
A fúria da Beleza - Elisa Lucinda
Estupidamente bela
a beleza dessa “maria-sem-vergonha”
soca meu peito esta manhã!
Estupendamente funda,
a beleza, quando é linda demais,
dá uma imagem feita só de sensações,
de modo que, apesar de não se ter a consciência desse todo, naquele instante não nos falta nada.
É um pá, um tapa, um golpe,
um bote que nos paralisa, organiza,
dispersa, conecta e completa!
Estonteantemente linda
a beleza doeu profundo no peito essa manhã.
Doeu tanto que eu dei de chorar.
Por causa de uma flor comum e misteriosa do caminho.
Uma delicada flor ordinária,
brotada da trivialidade do mato,
nascida do varejo da natureza,
me deu espanto!
Me tirou a roupa, o rumo, o prumo
e me pôs a mesa...
é a porrada da beleza!
Eu dei de chorar de uma alegria funda,
quase tristeza.
Acontece às vezes e não avisa.
A coisa estarrece e abre-se um portal.
É uma dobradura do real, uma dimensão dele, uma mágica à queima-roupa
sem truque nenhum. E é real.
Doeu a flor em mim tanto e com tanta força que eu dei de soluçar!
O esplendor do que vi era pancada, era baque e era bonito demais!
Penso, às vezes, que vivo pra esse momento
indefinível, sagrado, material, cósmico,
quase molecular.
Posto que é mistério,
descrevê-lo exato perambula ermo dentro da palavra impronunciável.
Sei que é desta flechada de luz
que nasce o acontecimento poético.
Poesia é quando a iluminação zureta,
bela e furiosa desse espanto
se transforma em palavra!
A florzinha distraída,
existindo singela na rua paralelepípeda esta manhã,
doeu profundo como se passasse do ponto.
Como aquele ponto do gozo,
como aquele ápice do prazer,
que a gente pensa que vai até morrer!
Como aquele máximo indivisível,
que de tão bom é bom de doer,
aquele momento em que a gente pede pára
querendo e não podendo mais querer,
porque mais do que aquilo
não se agüenta mais...
sabe como é ?
Violenta, às vezes, de tão bela, a beleza é!
Elisa Lucinda
Sobre a poesia - Elisa Lucinda e Rubem Alves
Em todas as conceituações há aspectos comuns: a poesia passa pelos sentidos, requer e é musicalidade, invade o corpo, a alma e transcende o espírito.
Veja esta deliciosa conversa entre Rubem Alves e Elisa Lucinda.
E para você, o que é poesia?
Abraços poéticos
quarta-feira, 17 de junho de 2009
A TEORIA DO MEDALHÃO – a construção de uma sociedade de aparências
Caros amigos,
Este conto estará presente no vestibular da UNEB. Independente de qualquer concurso, vale à pena ler e refletir:
- Compare os valores presentes no texto com os valores pregados na sociedade do final do século XIX e início do século XX: capitalismo, individualismo, burguesia X proletariado, ilusão, solidão, competição.
- Compare o conto e o contexto acima com a sociedade atual.
- Pense:valorizamos, enquanto seres sociais historicamente construídos, mais: o ser, o ter ou o parecer?
Leia, reflita e construa a sua opinião!
A TEORIA DO MEDALHÃO
- Estás com sono?
- Não, senhor.
- Nem eu; conversemos um pouco. Abre a janela. Que horas são?
- Onze.
- Saiu o último conviva do nosso modesto jantar. Com que, meu peralta, chegaste aos teus vinte e um anos. Há vinte e um anos, no dia 5 de agosto de 1854, vinhas tu à luz, um pirralho de nada, e estás homem, longos bigodes, alguns namoros...
- Papai...
- Não te ponhas com denguices, e falemos como dois amigos sérios. Fecha aquela porta; vou dizer-te coisas importantes. Senta-te e conversemos. Vinte e um anos, algumas apólices, um diploma, podes entrar no parlamento, na magistratura, na imprensa, na lavoura, na indústria, no comércio, nas letras ou nas artes. Há infinitas carreiras diante de ti. Vinte e um anos, meu rapaz, formam apenas a primeira sílaba do nosso destino. Os mesmos Pitt e Napoleão, apesar de precoces, não foram tudo aos vinte e um anos. Mas qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum. A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante.
- Sim, senhor.
- Entretanto, assim como é de boa economia guardar um pão para a velhice, assim também é de boa prática social acautelar um ofício para a hipótese de que os outros falhem, ou não indenizem suficientemente o esforço da nossa ambição. É isto o que te aconselho hoje, dia da tua maioridade.
- Creia que lhe agradeço; mas que ofício, não me dirá?
- Nenhum me parece mais útil e cabido que o de medalhão. Ser medalhão foi o sonho da minha mocidade; faltaram-me, porém, as instruções de um pai, e acabo como vês, sem outra consolação e relevo moral, além das esperanças que deposito em ti. Ouve-me bem, meu querido filho, ouve-me e entende. És moço, tens naturalmente o ardor, a exuberância, os improvisos da idade; não os rejeites, mas modera-os de modo que aos quarenta e cinco anos possas entrar francamente no regime do aprumo e do compasso. O sábio que disse: "a gravidade é um mistério do corpo", definiu a compostura do medalhão. Não confundas essa gravidade com aquela outra que, embora resida no aspecto, é um puro reflexo ou emanação do espírito; essa é do corpo, tão-somente do corpo, um sinal da natureza ou um jeito da vida. Quanto à idade de quarenta e cinco anos...
- É verdade, por que quarenta e cinco anos?
- Não é, como podes supor, um limite arbitrário, filho do puro capricho; é a data normal do fenômeno. Geralmente, o verdadeiro medalhão começa a manifestar-se entre os quarenta e cinco e cinqüenta anos, conquanto alguns exemplos se dêem entre os cinqüenta e cinco e os sessenta; mas estes são raros. Há-os também de quarenta anos, e outros mais precoces, de trinta e cinco e de trinta; não são, todavia, vulgares. Não falo dos de vinte e cinco anos: esse madrugar é privilégio do gênio.
- Entendo.
- Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas idéias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente; coisa que entenderás bem, imaginando, por exemplo, um ator defraudado do uso de um braço. Ele pode, por um milagre de artifício, dissimular o defeito aos olhos da platéia; mas era muito melhor dispor dos dois. O mesmo se dá com as idéias; pode-se, com violência, abafá-las, escondê-las até à morte; mas nem essa habilidade é comum, nem tão constante esforço conviria ao exercício da vida.
- Mas quem lhe diz que eu...
- Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto à fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto indique certa carência de idéias, ainda assim pode não passar de uma traição da memória. Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas expender francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis aí um sintoma eloqüente, eis aí uma esperança, No entanto, podendo acontecer que, com a idade, venhas a ser afligido de algumas idéias próprias, urge aparelhar fortemente o espírito. As idéias são de sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as sofreemos, elas irrompem e precipitam-se. Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é extremamente delicado, distingue o medalhão completo do medalhão incompleto.
- Creio que assim seja; mas um tal obstáculo é invencível.
- Não é; há um meio; é lançar mão de um regime debilitante, ler compêndios de retórica, ouvir certos discursos, etc. O voltarete, o dominó e o whist são remédios aprovados. O whist tem até a rara vantagem de acostumar ao silêncio, que é a forma mais acentuada da circunspecção. Não digo o mesmo da natação, da equitação e da ginástica, embora elas façam repousar o cérebro; mas por isso mesmo que o fazem repousar, restituem-lhe as forças e a atividade perdidas. O bilhar é excelente.
- Como assim, se também é um exercício corporal?
- Não digo que não, mas há coisas em que a observação desmente a teoria. Se te aconselho excepcionalmente o bilhar é porque as estatísticas mais escrupulosas mostram que três quartas partes dos habituados do taco partilham as opiniões do mesmo taco. O passeio nas ruas, mormente nas de recreio e parada, é utilíssimo, com a condição de não andares desacompanhado, porque a solidão é oficina de idéias, e o espírito deixado a si mesmo, embora no meio da multidão, pode adquirir uma tal ou qual atividade.
- Mas se eu não tiver à mão um amigo apto e disposto a ir comigo?
- Não faz mal; tens o valente recurso de mesclar-te aos pasmatórios, em que toda a poeira da solidão se dissipa. As livrarias, ou por causa da atmosfera do lugar, ou por qualquer outra, razão que me escapa, não são propícias ao nosso fim; e, não obstante, há grande conveniência em entrar por elas, de quando em quando, não digo às ocultas, mas às escâncaras. Podes resolver a dificuldade de um modo simples: vai ali falar do boato do dia, da anedota da semana, de um contrabando, de uma calúnia, de um cometa, de qualquer coisa, quando não prefiras interrogar diretamente os leitores habituais das belas crônicas de Mazade; 75 por cento desses estimáveis cavalheiros repetir-te-ão as mesmas opiniões, e uma tal monotonia é grandemente saudável. Com este regime, durante oito, dez, dezoito meses - suponhamos dois anos, - reduzes o intelecto, por mais pródigo que seja, à sobriedade, à disciplina, ao equilíbrio comum. Não trato do vocabulário, porque ele está subentendido no uso das idéias; há de ser naturalmente simples, tíbio, apoucado, sem notas vermelhas, sem cores de clarim... - Isto é o diabo! Não poder adornar o estilo, de quando em quando...
- Podes; podes empregar umas quantas figuras expressivas, a hidra de Lerna, por exemplo, a cabeça de Medusa, o tonel das Danaides, as asas de Ícaro, e outras, que românticos, clássicos e realistas empregam sem desar, quando precisam delas. Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento. Caveant consules é um excelente fecho de artigo político; o mesmo direi do Si vis pacem para bellum. Alguns costumam renovar o sabor de uma citação intercalando-a numa frase nova, original e bela, mas não te aconselho esse artifício: seria desnaturar-lhe as graças vetustas. Melhor do que tudo isso, porém, que afinal não passa de mero adorno, são as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos, incrustadas na memória individual e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço inútil. Não as relaciono agora, mas fá-lo-ei por escrito. De resto, o mesmo ofício te irá ensinando os elementos dessa arte difícil de pensar o pensado. Quanto à utilidade de um tal sistema, basta figurar uma hipótese. Faz-se uma lei, executa-se, não produz efeito, subsiste o mal. Eis aí uma questão que pode aguçar as curiosidades vadias, dar ensejo a um inquérito pedantesco, a uma coleta fastidiosa de documentos e observações, análise das causas prováveis, causas certas, causas possíveis, um estudo infinito das aptidões do sujeito reformado, da natureza do mal, da manipulação do remédio, das circunstâncias da aplicação; matéria, enfim, para todo um andaime de palavras, conceitos, e desvarios. Tu poupas aos teus semelhantes todo esse imenso aranzel, tu dizes simplesmente: Antes das leis, reformemos os costumes! - E esta frase sintética, transparente, límpida, tirada ao pecúlio comum, resolve mais depressa o problema, entra pelos espíritos como um jorro súbito de sol.
- Vejo por aí que vosmecê condena toda e qualquer aplicação de processos modernos.
- Entendamo-nos. Condeno a aplicação, louvo a denominação. O mesmo direi de toda a recente terminologia científica; deves decorá-la. Conquanto o rasgo peculiar do medalhão seja uma certa atitude de deus Término, e as ciências sejam obra do movimento humano, como tens de ser medalhão mais tarde, convém tomar as armas do teu tempo. E de duas uma: - ou elas estarão usadas e divulgadas daqui a trinta anos, ou conservar-se-ão novas; no primeiro caso, pertencem-te de foro próprio; no segundo, podes ter a coquetice de as trazer, para mostrar que também és pintor. De outiva, com o tempo, irás sabendo a que leis, casos e fenômenos responde toda essa terminologia; porque o método de interrogar os próprios mestres e oficiais da ciência, nos seus livros, estudos e memórias, além de tedioso e cansativo, traz o perigo de inocular idéias novas, e é radicalmente falso. Acresce que no dia em que viesses a assenhorear-te do espírito daquelas leis e fórmulas, serias provavelmente levado a empregá-las com um tal ou qual comedimento, como a costureira esperta e afreguesada, - que, segundo um poeta clássico, Quanto mais pano tem, mais poupa o corte, Menos monte alardeia de retalhos; e este fenômeno, tratando-se de um medalhão, é que não seria científico.
- Upa! que a profissão é difícil!
- E ainda não chegamos ao cabo.
- Vamos a ele.
- Não te falei ainda dos benefícios da publicidade. A publicidade é uma dona loureira e senhoril, que tu deves requestar à força de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, coisas miúdas, que antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição. Que D. Quixote solicite os favores dela mediante, ações heróicas ou custosas, é um sestro próprio desse ilustre lunático. O verdadeiro medalhão tem outra política. Longe de inventar um Tratado científico da criação dos carneiros, compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de um jantar, cuja notícia não pode ser indiferente aos seus concidadãos. Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome ante os olhos do mundo. Comissões ou deputações para felicitar um agraciado, um benemérito, um forasteiro, têm singulares merecimentos, e assim as irmandades e associações diversas, sejam mitológicas, cinegéticas ou coreográficas. Os sucessos de certa ordem, embora de pouca monta, podem ser trazidos a lume, contanto que ponham em relevo a tua pessoa. Explico-me. Se caíres de um carro, sem outro dano, além do susto, é útil mandá-lo dizer aos quatro ventos, não pelo fato em si, que é insignificante, mas pelo efeito de recordar um nome caro às afeições gerais. Percebeste?
- Percebi.
- Essa é publicidade constante, barata, fácil, de todos os dias; mas há outra. Qualquer que seja a teoria das artes, é fora de dúvida que o sentimento da família, a amizade pessoal e a estima pública instigam à reprodução das feições de um homem amado ou benemérito. Nada obsta a que sejas objeto de uma tal distinção, principalmente se a sagacidade dos amigos não achar em ti repugnância. Em semelhante caso, não só as regras da mais vulgar polidez mandam aceitar o retrato ou o busto, como seria desazado impedir que os amigos o expusessem em qualquer casa pública. Dessa maneira o nome fica ligado à pessoa; os que houverem lido o teu recente discurso (suponhamos) na sessão inaugural da União dos Cabeleireiros, reconhecerão na compostura das feições o autor dessa obra grave, em que a "alavanca do progresso" e o "suor do trabalho" vencem as "fauces hiantes" da miséria. No caso de que uma comissão te leve a casa o retrato, deves agradecer-lhe o obséquio com um discurso cheio de gratidão e um copo d'água: é uso antigo, razoável e honesto. Convidarás então os melhores amigos, os parentes, e, se for possível, uma ou duas pessoas de representação. Mais. Se esse dia é um dia de glória ou regozijo, não vejo que possas, decentemente, recusar um lugar à mesa aos reporters dos jornais. Em todo o caso, se as obrigações desses cidadãos os retiverem noutra parte, podes ajudá-los de certa maneira, redigindo tu mesmo a notícia da festa; e, dado que por um tal ou qual escrúpulo, aliás desculpável, não queiras com a própria mão anexar ao teu nome os qualificativos dignos dele, incumbe a notícia a algum amigo ou parente.
- Digo-lhe que o que vosmecê me ensina não é nada fácil.
- Nem eu te digo outra coisa. É difícil, come tempo, muito tempo, leva anos, paciência, trabalho, e felizes os que chegam a entrar na terra prometida! Os que lá não penetram, engole-os a obscuridade. Mas os que triunfam! E tu triunfarás, crê-me. Verás cair as muralhas de Jericó ao som das trompas sagradas. Só então poderás dizer que estás fixado. Começa nesse dia a tua fase de ornamento indispensável, de figura obrigada, de rótulo. Acabou-se a necessidade de farejar ocasiões, comissões, irmandades; elas virão ter contigo, com o seu ar pesadão e cru de substantivos desadjetivados, e tu serás o adjetivo dessas orações opacas, o odorífero das flores, o anilado dos céus, o prestimoso dos cidadãos, o noticioso e suculento dos relatórios. E ser isso é o principal, porque o adjetivo é a alma do idioma, a sua porção idealista e metafísica. O substantivo é a realidade nua e crua, é o naturalismo do vocabulário.
- E parece-lhe que todo esse ofício é apenas um sobressalente para os deficits da vida?
- Decerto; não fica excluída nenhuma outra atividade.
- Nem política?
- Nem política. Toda a questão é não infringir as regras e obrigações capitais. Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou ultramontano, com a cláusula única de não ligar nenhuma idéia especial a esses vocábulos, e reconhecer-lhe somente a utilidade do scibboleth bíblico.
- Se for ao parlamento, posso ocupar a tribuna?
- Podes e deves; é um modo de convocar a atenção pública. Quanto à matéria dos discursos, tens à escolha: - ou os negócios miúdos, ou a metafísica política, mas prefere a metafísica. Os negócios miúdos, força é confessá-lo, não desdizem daquela chateza de bom-tom, própria de um medalhão acabado; mas, se puderes, adota a metafísica; - é mais fácil e mais atraente. Supõe que desejas saber por que motivo a 7ª companhia de infantaria foi transferida de Uruguaiana para Canguçu; serás ouvido tão-somente pelo ministro da guerra, que te explicará em dez minutos as razões desse ato. Não assim a metafísica. Um discurso de metafísica política apaixona naturalmente os partidos e o público, chama os apartes e as respostas. E depois não obriga a pensar e descobrir. Nesse ramo dos conhecimentos humanos tudo está achado, formulado, rotulado, encaixotado; é só prover os alforjes da memória. Em todo caso, não transcendas nunca os limites de uma invejável vulgaridade.
- Farei o que puder. Nenhuma imaginação?
- Nenhuma; antes faze correr o boato de que um tal dom é ínfimo.
- Nenhuma filosofia?
- Entendamo-nos: no papel e na língua alguma, na realidade nada. "Filosofia da história", por exemplo, é uma locução que deves empregar com freqüência, mas proíbo-te que chegues a outras conclusões que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade, etc., etc.
- Também ao riso?
- Como ao riso?
- Ficar sério, muito sério...
- Conforme. Tens um gênio folgazão, prazenteiro, não hás de sofreá-lo nem eliminá-lo; podes brincar e rir alguma vez. Medalhão não quer dizer melancólico. Um grave pode ter seus momentos de expansão alegre. Somente, - e este ponto é melindroso...
- Diga...
- Somente não deves empregar a ironia, esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos cépticos e desabusados. Não. Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda, franca, sem biocos, nem véus, que se mete pela cara dos outros, estala como uma palmada, faz pular o sangue nas veias, e arrebentar de riso os suspensórios. Usa a chalaça. Que é isto?
- Meia-noite.
- Meia-noite? Entras nos teus vinte e dois anos, meu peralta; estás definitivamente maior. Vamos dormir, que é tarde. Rumina bem o que te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale o Príncipe de Machiavelli. Vamos dormir.
Fonte:MACHADO DE ASSIS. Obra completa.Volume II. Rio de Janeiro:Aguilar, 1994. Páginas 288-295.
Saudações Literárias
segunda-feira, 15 de junho de 2009
Românticos - Vander Lee
A nossa aula de Romantismo foi muito gostosa! Em homenagemà aula, estão aí os vídeos de Vander Lee, com as músicas mais pedidas por vocês!
Beijocas
Românticos - Vander Lee
Esperando Aviões - Vander Lee
Saudações literárias
quinta-feira, 14 de maio de 2009
Cadernos Negros - performance: Rádio Breu
Poema de Sacolinha
Cadernos Negros - poema de Cristiane Sobral
domingo, 3 de maio de 2009
O homem que sabia javanês - Lima Barreto
Observem este vídeo.
Escutem a canção e façam uma análise comparativa entre o vídeo e o texto.
Questione: Quais os fatores que conduziram o personagem principal à ascensão social?
Quais os valores que permeiam a relação do professor de javanêns com o seu aluno?
Quais os valores sociais que são suscitados no conto?
Boas reflexões!
CLARICE LISPECTOR - PARTE 1
sábado, 2 de maio de 2009
MÃE
entregou a sua...
Que ao lutar por seus filhos,
esqueceu-se de si mesma...
Que ao desejar o sucesso deles, abandonou seus anseios...
Que ao vibrar com suas vitórias, esqueceu seu próprio mérito...
Que ao receber injustiças,
respondeu com seu amor...
E que, ao relembrar o passado,
só tem um pedido:
DEUS, PROTEJA MEUS
FILHOS, POR TODA
A VIDA!
Para você mãe, um mais
que merecido:
Feliz Dia das Mães!
Você merece!!!
Fonte: http://mensagensepoemas.uol.com.br/dia-das-maes/poema-para-a-mae-4.html
AS MENINAS - breve reflexão
O nosso encontro sobre o Romance AS MENINAS foi fabuloso!
Através desta construção dialógica em que se transformaram as nossas aulas, compreendemos os diversos sentidos da obra, mergulhando na história de cada personagem e da autora.
Compreendemos que as fragilidades de cada personagem é um retrato das fragilidades humanas. Assim o refúgio nas drogras, nos objetos de recordação, no amante que não chega são proteções contra as adversidades das jovens universitárias.
Lião retrata não só a jovem que luta contra a ditadura militar em década de 70, mas também a baiana e o preconceito que os sulistas tinham em relação à Bahia. A imagem de uma pessoa que não gostava de tomar banho e vivia de forma inconsequente retratam este preconceito.
Contudo a obra vai além ao revelar que as três amigas com histórias de vida tão distintas cruzam o seu destino e se unem em torno de uma amizade incondicional.
O preconceito, o medo, a inveja, a sensação de superioridade vão sendo superados pela descoberta de que todas as pessoas são frágeis e imperfeitas e por isso precisam ser solidárias.
É a solidariedade uma das marcas destas meninas. A amizade que supera as diferenças e compromete cada uma com a vida da outra.
O desfecho não poderia ser melhor, pois com a morte de Ana se eterniza um momento que ficará imaculado na vida de Lia e Lorena. As duas se separam, carregando consigo um segredo, uma marca que irá determinar o desenrolar futuro de suas vidas.
Adorei este encontro!
Além das reflexões literárias, fizemos uma reflexão para a vida:
Será que temos o direito de julgar e condenar as pessoas por serem diferentes de nós?
Será que somos superiores aos demais, por termos uma consciência diferente?
Cada um tem uma história única e está num processo evolutivo único. É preciso respeitar mais as dificuldades pelas quais passa cada indivíduo. É preciso em vez de julgar e discriminar, compreender, agindo da mesma forma como gostariamos que agissem conosco.
Sejamos mais solidários, sejamos mais amigos.
Que o amor faça a diferença!
Abraços fraternais!
sexta-feira, 17 de abril de 2009
Intertextualidades de As Meninas
Caros amigos,
Lygia Fagundes Telles, através da personagem Lorena, faz uma intertextualidade com A MÁQUINA DO MUNDO de Carlos Drummond de Andrade, no capítulo 02 e A DIVINA COMÉDIA de Dante, ao citar Beatriz.
Leiam a seguir o Poema A Máquina do Mundo e um estudo fabuloso sobre os seus aspectos textuais e intertextuais.
A Máquina do Mundo
Carlos Drummond de Andrade
E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino roucose misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretaslentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerávelpelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentartoda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perderae nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora deteu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivose revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atingedistância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentose tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeberno sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra faceque vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentesem si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.
FIGURAÇÕES ALEGÓRICAS DA MÁQUINA DO MUNDO
Ana Lúcia M. de Oliveira (UERJ)
Esta comunicação pretende enfocar o poema “A máquina do mundo”, de Carlos Drummond de Andrade, a partir de um exame da sua configuração alegórica. O ponto de partida será uma análise comparativa de textos seminais que desenvolveram a alegoria da máquina cósmica, especialmente A Divina Comédia e Os Lusíadas. A partir da análise do dialogismo poético em relação a essa tópica, buscaremos detectar a grande diferença introduzida pelo poema drummondiano, em que a visão transcendental oferecida pela máquina, em vez de provocar surpresa e admiração, é desinteressadamente recusada pelo eu poético.
Em “A máquina do mundo”, publicado no livro Claro enigma (Andrade, 1973: 197-200), encontramos um arcabouço narrativo em primeira pessoa. Apesar de longo (com 96 versos), o poema apresenta apenas seis períodos, que estruturam três seqüências narrativas básicas. A primeira está representada nos nove primeiros versos, que delineiam a moldura espácio-temporal - “fecho da tarde” (v. 3) e “estrada de Minas, pedregosa” (v. 2) - do acontecimento que será narrado. Na segunda seqüência, ocupando a maior parte do poema, a aparição da máquina e seu discurso de início se apresentam discretamente, mantendo o clima de introspecção do solitário caminhante revelado na primeira seqüência: “Abriu-se majestosa e circunspecta,/ Sem emitir um som que fosse impuro/ nem um clarão maior que o tolerável” (vv. 13-15). A máquina o convida a se aplicar “sobre o pasto inédito/ da natureza mítica das coisas” (vv. 29-30); entretanto, por não obter resposta, muda de tom, tornando-se mais categórica:
olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
[...]
vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo. (vv. 40-48)
Nesse fragmento do discurso da máquina, podemos observar os recursos utilizados para seduzir o viajante. Em primeiro lugar, a reiteração de verbos no imperativo dentro do mesmo campo semântico - “olha”, “repara”, “vê”, “contempla” - serve de reforço ao convite inicial. Também a enumeração dos elementos a serem revelados assim como o número de adjetivos usados para descrevê-los - “sublime”, “formidável”, “total”, “primeiro”, “singular” - reforçam o pedido. Finalmente, um apelo emotivo, ao ordenar que o coração do poeta acolha o que sua mente não se dispõe a aceitar. No entanto, todos esses recursos revelam-se inúteis. Para um apelo visual, a recusa se dá no mesmo nível: por não querer ver os conhecimentos oferecidos pela máquina, o viajante drummondiano baixa “os olhos incurioso, lasso” (v. 88). Desdenhada a visão da grande máquina, instaura-se uma nova seqüência, que retoma a situação inicial: o viajante continua a sua jornada, agora totalmente imerso nas trevas, as quais indiciam o tempo decorrido entre o surgimento da máquina no fecho da tarde e o seu desaparecimento já na noite, e também simbolizam o isolamento total do eu, a sua recusa do conhecimento e da comunicação com o engenho sobrenatural.
Destaque-se ainda que a narração começa in media res, no meio de uma caminhada numa estrada de Minas, em que o viajante encontra-se envolto por sentimentos de introspecção e renúncia, atribuídos posteriormente ao cansaço de uma busca não concluída, à procura de um conhecimento jamais encontrado. Esses sentimentos determinarão sua atitude posterior face à máquina bem como a retomada de sua solitária caminhada na seqüência final. Tal retorno ao ponto de partida denota a impossibilidade de superação de sua condição primeira e ressalta também o continuum da caminhada, não interrompida nem após revelações tão surpreendentes. Concretizando, portanto, a volta circular ao início, há a repetição quase total do segundo verso no penúltimo terceto: “sobre a estrada de Minas, pedregosa”.
Observemos mais de perto o viajante desse poema. Ele é o ser que caminha sozinho, identificando-se com a paisagem árdua através da escuridão maior, vinda dos montes e de seu próprio ser desenganado (vv. 8-9). Em seu isolamento, nega a busca existencial, a tentativa de compreensão do enigma do mundo, que antes o caracterizara. E, recusando a revelação suprema oferecida pela máquina, abdica, portanto, de um conhecimento metafísico, como podemos observar nos seguintes versos: “pela mente exausta de mentar/ toda uma realidade que a transcende” (vv. 18-19) e “quantos sentidos e intuições restavam/ a quem de os ter usado os já perdera/ e nem desejaria recobrá-los” (v. 23-25). Desse modo, a aparição do impedimento momentâneo de sua caminhada sobrevém quando já estava definida a sua nova postura face aos obstáculos cotidianos com que já se acostumara e que ocasionaram o seu estado de desistência.
É importante enfatizar a correlação entre a postura de isolamento do viajante e o ambiente físico descrito no poema, entre seu “passo seco” e a “estrada pedregosa”. O caminho deserto e árido constitui o elemento topológico a partir do qual ele se define como ser solitário, índice do seu conflito não só existencial, como também epistemológico. Afastado de seus semelhantes, o homem se reflete na paisagem através de signos de isolamento e dificuldade, e tal jogo de espelhos é reiterado no plano acústico, em que o sino rouco se mistura ao som seco de seus sapatos (v. 4). Lentos são seus passos e também os movimentos das aves (v. 5-7), e a escuridão final apresenta-se, simultaneamente, segundo José Guilherme Merquior, “como sombra do céu e do homem” (1975: 83). Sendo pedregosa, a estrada retoma o tema da dificuldade, do obstáculo no caminho, tão caro à obra de Drummond, e exemplificado no conhecido poema “no meio do caminho” (1973: 12), que aliás apresenta a mesma descrição metonímica de cansaço visual-epistemológico - “na vida de minhas retinas tão fatigadas” (idem, ibid.) - presente no viajante de “pupilas gastas na inspeção...” (v. 16).
Passemos agora a uma breve discussão do diálogo intertextual que se estabelece no poema em foco, esboçando uma comparação com a Divina Comédia, com Os Lusíadas e com outros textos de Drummond.
Inicialmente, destaque-se que a própria Divina Comédia foi elaborada a partir de relações intertextuais com o sistema épico precedente. Como se sabe, sua concepção geral baseia-se num encontro espiritual do poeta com Virgílio, que o conduz numa viagem através do Inferno e do Purgatório, até atingir o Paraíso, onde o poeta passa a ser conduzido por Beatriz. Tal ligação com Virgílio, segundo Ernst Curtius, é, historicamente, “a confirmação do laço que a Idade Média Latina criou entre o mundo antigo e o moderno” (1973: 358).
Vários críticos já observaram alguns paralelos temáticos e formais entre o poema drummondiano e o de Dante. Segundo Emanuel de Moraes, no primeiro “situa-se o poeta em face do problema do destino, e, pela localização paisagística do ser cuja alma expressa, sua poesia se conduz pela mesma linha antes singrada por Dante e Poe na desensofrida busca do mistério” (In: Brayner, 1977: 120). Para Affonso Romano de Sant´Anna, a semelhança se dá no nível formal do poema, composto em “terzas, que lembram os degraus com que Dante subiu a interpretar o mistério do Inferno-Purgatório-Paraíso” (1980: 243). Também Haroldo de Campos considera tal poema “um ensaio de poesia metafísica (quem sabe até de secreta teodicéia laica), no qual se recorta o perfil dantesco” (In: Brayner, 1977: 249).
De fato, alguns pontos são passíveis de comparação entre as duas obras. Quanto ao tema, ambas apresentam uma situação semelhante: um viajante solitário na noite a quem é dada uma forma de revelação transcendental. Mas, a partir dessa situação temática única, os poemas desenvolvem caminhos radicalmente diferentes. Pertencendo a uma época para a qual Deus ainda não havia morrido, o poema de Dante descreve um ser humano com uma cosmovisão teocêntrica que, como tal, busca a união com o sagrado. Diante da grande revelação divina, o poeta-viajante manifesta uma alegria intensa, uma forma de êxtase místico-espiritual. Já o caminhante drummondiano não aspira a uma visão mística, uma vez que esta não lhe satisfaz mais, pois “a fé se abrandara” (v. 72). Recusando a visão proposta pela máquina, reafirma a laicização do conhecimento moderno. Desdenha a oferta maravilhosa e segue seu caminho difícil, porque não pode aceitar o que não se origina de “seu próprio ser desenganado” (v. 9).
Quanto à parte formal, ambos se apresentam estruturados em tercetos. A terza rima foi criada por Dante como uma forma apropriada à sua poesia, devido à referência simbólica à Santíssima Trindade. Como reflexo desse simbolismo de base católica, encontramos vários elementos triádicos: além da terza rima, os três cántiche, os trinta e três cánti em cada cántica, as nove divisões de cada plano e, inclusive, o próprio ano em que a narrativa se desenrola: 1300. Já Drummond empregou os tercetos clássicos, mas não no modelo encadeado e rimado de Dante, afastando-se da disposição estrófica e da cadeia de rimas triplas interligadas do poema italiano. Não assumindo uma postura mística em sua concepção da máquina do mundo, o poeta mineiro utiliza os tercetos como um simples recurso formal, dissociando-os do simbolismo religioso manifesto na Divina Comédia. Na aguda formulação de Alfredo Bosi, a “Máquina do mundo” foi “escrita segundo o modelo da terza rima dantesca, mas... sem rima, já que seus decassílabos são rigorosamente brancos” (1988: 95).
Apesar de encontrarmos na obra de Drummond constantes referências a Camões, os estudos comparativos entre os dois poetas se concentram na “máquina do mundo” e n´Os Lusíadas.
O episódio de revelação da máquina, feita pela ninfa Tétis a Vasco da Gama e seus companheiros, constitui a parte final da epopéia lusa, realizando uma síntese alegórica da cosmovisão não só do autor como também de sua própria época. Com efeito, “a epopéia camoniana foi conseqüência da própria evolução cultural e científica do país. Surgiu no momento adequando, quando era esperada, [...] como coroamento do esforço de toda uma coletividade que declinava” (Teles, 1976: 37). Expressiva de um dado momento histórico, essa obra formula uma síntese da cultura medieval com a renascentista, que se reflete na concepção da máquina do mundo, não só nos níveis histórico - os feitos dos navegantes portugueses - e científico - a teoria cosmológica ptolomaica ainda corrente na época -, como também no ficcional - o entrelaçamento do maravilhoso pagão e do cristão, típico do momento de transição representado pelo século XVI. Esse momento de transição se evidencia em certos conflitos básicos que permeiam a obra, como, por exemplo, o contraste entre o sentimento da dignidade do homem, que, com sua ousadia consegue quebrantar os “vedados térmicos”, candidatando-se por isso à divinização, e o da sua insignificância de “bicho da terra tão pequeno”.
Por estar estritamente relacionada à forma mentis do seu tempo, a máquina camoniana diverge em vários aspectos da máquina drummondiana, satisfazendo, conforme assinalou Silviano Santiago (1966: 393) curiosidade diferentes. Na primeira obra, uma curiosidade geográfica e astronômica dos navegantes portugueses, apresentando uma lição de mecânica celeste e de geografia universal. Em termos de lógica narrativa, a máquina é o artifício que permite inscrever no âmbito do poema as conquistas futuras dos portugueses, indicadas no discurso profético de Tétis, a partir do globo mágico. Já na segunda, ao contrário, a máquina se propõe a satisfazer uma curiosidade humana e filosófica que lhe havia sido negada antes. Trata-se de uma máquina ontológica, que proporciona o conhecimento da vida e do mistério do ser.
No poema de Drummond, a revelação da máquina constitui não um episódio, como nos Lusíadas, mas o elemento estruturador central. Afastando-se mais da epopéia lusa, ele inverte o tratamento da temática: àqueles a quem foi anteriormente dado o conhecimento do engenho divino, o prêmio foi recebido com satisfação, mas o viajante drummondiano recusa a oferta ao ser tentado. Outra diferença básica encontra-se na configuração do maravilhoso. O plano ficcional d´Os Lusíadas se estrutura a partir da intervenção dos deuses pagãos no decorrer da viagem dos portugueses, porém esse maravilhoso pagão está subordinado à ordenação cristã do mundo. Já em Drummond a máquina, pertencente a um plano extraterreno, é questionada pelo viajante, que, por não acreditar em auxílios superiores, rejeita os conhecimentos por ela oferecidos, negando com isso a possibilidade de qualquer recurso à transcendência. Outro ponto de diferença está no fato de a máquina ser apresentada, no poema luso, através da intervenção de Tétis, enquanto no poema drummondiano é a própria máquina que se revela diretamente ao observador. Nessa revelação, uma semelhança: o recurso de sedução da máquina, nos dois casos, se apóia em um imperativo apelo visual. No primeiro, através da repetição anafórica constante dos verbos “olha” e “vê”; no segundo, como vimos, pelo emprego de verbos pertences ao mesmo campo semântico: “olha”, “repara”, “ausculta”, “vê”, “contempla”.
Por fim, destaque-se o diálogo do texto em foco com outros poemas do autor. A situação narrativa de “A máquina do mundo” é análoga à de “No meio do caminho” (Andrade, 1973: 12), “Carrego comigo” (Andrade, 1973: 79) e “O enigma” (idem, 162). A propósito de tal analogia, Silviano Santiago já observou “uma reincidência do tema no tempo, onde se sobressai a evolução de um símbolo: um objeto (pedra, embrulho e coisa) que de repente brota, não se sabe nem de onde nem para quê, e que, intrigante, intercepta o caminho e os passos do poeta” (1966: 389). Esse objeto se oferece a ele, instigando a sua curiosidade, revelando-se como um enigma a ser decifrado. E, como enigma, é obscuro, pois “zomba da tentativa de interpretação” (Andrade, 1973: 162).
Apesar de o arcabouço narrativo ser o mesmo, “A máquina do mundo” apresenta variações com relação aos textos citados. Em primeiro lugar, especifica tempo e local em que se dá o encontro com o objeto, ao contrário do que ocorre nos outros poemas, em que as circunstâncias são deixadas em suspense. Em todos eles o objeto se oferece, mas, contrastando com os objetos anteriores, que permaneciam fechados e herméticos, impossibilitando a sua compreensão, a máquina agora se abre, convidando o caminhante a penetrar em seu interior e conhecer “a total explicação da vida” (v. 43). A capital diferença é que agora o eu não aceita a “coisa oferta”, não se mostra curioso face à tentativa de revelação do enigma, que tanto o intrigara anteriormente. Nessa perspectiva, aceitar a oferta da máquina seria negar a autonomia do pensamento, transferir para um objeto mágico a solução de suas inquietações humanas, demasiado humanas.
Nesse viés comparativo, torna-se interessante confrontar a imagem da máquina do mundo plasmada em “Elegia 1938” (Andrade, 1973: 59) - “Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina/ e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis mistérios” - com a que aparece no poema em questão: “e a máquina do mundo, repelida, se foi miudamente recompondo”. Cumpre aqui notar a oposição dos vocábulos “grande” e “miudamente”, ambos aplicados à máquina e que refletem diferentes configurações do lirismo do autor, que Antônio Carlos Secchin (2003: 168) denominou de “sucessivos movimentos de sístoles e diástoles, de expansões e retrações”. No primeiro poema, que significativamente pertence ao livro Sentimento do mundo, o poeta sente-se pequeno diante da grandeza e dos mistérios do universo, que superam o seu drama existencial. Já o segundo situa-se em um momento diferente da sua criação, em que sujeito e objeto se encontram no mesmo plano. Tal fusão eu/mundo já está indiciada no início do poema - como observamos - através da escuridão, vinda do monte e do seu próprio ser desenganado (v. 8-9), e do som do sino rouco que se mistura ao som de seus sapatos (v. 3-4).
Sintetizando, pode-se dizer que “A máquina do mundo” reflete não um pessimismo epistemológico, mas uma negação do conhecimento gratuito, que se oferece sem ter sido buscado. Reflete também um humanismo tipicamente moderno, com sua recusa de uma realidade sobrenatural, de soluções exteriores ao próprio homem. Por fim, esclarece-se não o enigma, mas a sua condição básica de existência: o enigma deve permanecer enquanto tal, pois não é passível de solução que não dependa de uma intervenção sobre-humana.
Minhas retinas tão fatigadas apenas apreenderam de esguelha o inusitado acontecimento: no meio do caminho tinha uma máquina, tinha uma máquina no meio do caminho. Para concluir, citarei um verso do poema “Manual da máquina CDA”, de Armando Freitas Filho, que sintetiza com precisão o núcleo desse maquinismo aqui examinado: “A máquina é de pedra e pensamento” (2003: 63).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.
BRAYER, Sonia (org.). Carlos Drummond de Andrade: Fortuna crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Porto: Porto Editora, [s/d.].
CURTIUS, Ernst. European literature and the Latin Middle Ages. New Jersey: Princeton University Press, 1973.
DANTE. A Divina Comédia. São Paulo: Editora 34, 2001.
FREITAS FILHO, Armando. Máquina de escrever: poesia reunida e revista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.
HOUAISS, Antonio. Drummond: mais seis poetas e um problema. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
MERQUIOR, José Guilherme. Verso universo em Drummond. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.
SANT´ANNA, Affonso R. de. Carlos Drummond de Andrade: análise da obra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
SANTIAGO, Silviano. “Camões e Drummond: a máquina do mundo”. Hispania (3), september 1966, v. XLIX.
SECCHIN, Antonio C. Drummond: a infância da poesia. Escritos sobre poesia e alguma ficção. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003.
TELES, Gilberto M. Camões e a poesia brasileira. São Paulo: Quíron, 1976.
Fonte: http://www.filologia.org.br/viiicnlf/anais/caderno11-09.html
IMPORTANTE!
o Poema A MÁQUINA DO MUNDOfoi escolhido como o melhor poema brasileiro de todos os tempos por um grupo significativo de escritores e críticos, a pedido do caderno “MAIS” (edição de 02-01-2000), publicado aos domingos pelo jornal “Folha de São Paulo”. Publicado originalmente no livro “Claro Enigma”, o texto acima foi extraído do livro “Nova Reunião”, José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1985, pág. 300.
FONTE: http://www.releituras.com/drummond_amaquina.asp
AS MENINAS – LYGIA FAGUNDES TELES - Resumo sobre a obra
O livro narra a história de três universitárias de condição social e origens diversificadas, que se conhecem em um pensionato de freiras na cidade de São Paulo, tornam-se muito amigas, apesar das diferenças de valores e personalidades, convivem durante algum tempo, compartilham seus dramas e sonhos, ajudam-se nos momentos difíceis e terminam por separar-se definitivamente. O encanto e a dificuldade aparente da leitura repousam no foco narrativo cambiante: Lorena Vaz Leme, Ana Clara Conceição e Lia de Melo Schultz contam a própria história através do fluxo de consciência, misturando suas falas, ações, lembranças e críticas recíprocas. Depois dessa surpresa inicial, o leitor acaba por identificar o estilo de cada personagem e sente-se desafiado a desvendar o universo interior das três "meninas"- uma paulista quatrocentona, uma baiana "terrorista" e uma modelo de moral "duvidosa" e viciada em drogas. Os capítulos não têm nome, mas números: "Um" - Lorena Vaz Leme divaga em seu quarto dourado e rosa - com cozinha, geladeira, banheira etc - no pensionato Nossa Senhora de Fátima: pensa na amiga Lia de Melo Schultz, que tem pretensões a escritora e é militante política; no gato Astronauta, que cresceu e abandonou-a; em Che Guevara, que foi líder de toda uma geração; em M.N., homem misterioso que lhe desperta desejos eróticos, em Jesus Cristo, a quem dedica a música de Jimi Hendrix; e na morte desse roqueiro e de Rômulo, seu irmãozinho querido. Lia aparece para pedir-lhe o carro de "mãezinha" emprestado, e enquanto tomam o chá especial de Lorena, conversam e divagam sobre tolices e sobres coisas sérias, concomitantemente a greve na faculdade; a prisão de Miguel, namorado de Lia e militante político também; na alienação da burguesia acomodada; na repressão militar, nos amigos que estão presos e sendo torturados. Lorena lembra a morte traumática de Rômulo e sua agonia nos braços da mãe, vitimado por um tiro acidental dado pelo outro irmão, Remo. Da fuga deste para o exterior através da Diplomacia, dos freqüentes presentes que ele envia a ela (sinos, lenços, roupas, comida...). Mistura a esses pensamentos a figura do médico Marcus Nemésios (o M.N.), casado e bem mais velho, de quem ela sonha receber amor, carinho e proteção (Aliás, passa o livro todo aguardando um telefonema dele, que nunca se concretiza); evoca ainda a figura de Ana Clara, suas origens "suspeitas", no excesso de tranqüilizantes que consome; pensa na própria adolescência, ao piano, no gostoso convívio familiar, nos banhos de banheira, na decisão de morar no pensionato, no aluguel e decoração do quarto por Mieux, o atual namorado da mãe. Lia fala sobre o livro que escrevera e acabara por rasgar. Criticam Ana Clara e o namorado Max, traficante que a viciou em drogas, e o provável e desconhecido noivo rico com quem ela pretende se casar para "sair do buraco", após plástica restauradora da virgindade, "bancada" por Lorena. Lia pede várias vezes o carro emprestado, e um pouco de "oriehnid" (dinheiro "ao contrário", para dar sorte) para o "aparelho"(= grupo de resistência à ditadura militar). Apesar de temer envolvimentos com o grupo e suas conseqüências, Lorena é incapaz de dizer "não" aos pedidos da (s) amiga (s). "Dois" - Ana Clara e Max drogam-se na cama e deliram. Ela sente-se travada, bloqueada, apesar das sessões de terapia - ela odeia o analista. Acha-se bonita (modelo, 1,77 m) e carente - a mãe, prostituta, nunca lhe deu atenção. Lembra-se do Dr. Algodãozinho, que deixava seus dentes apodrecerem para abusar sexualmente dela e da mãe, em sua cadeira de dentista. Pensa no quanto ama Max, mas que em janeiro casa-se com o noivo rico e resolve seus problemas. Sente ódio de Deus - e de negros. Resgata a infância carente, repleta de ruídos (ratos, baratas) e cheiros, nos prédios em construção, onde vivia com a mãe e os sucessivos amantes.Também evoca detalhes da vida das amigas Lia e Lorena. Max também delira. Reza. Teve educação esmerada (fala francês, é fino) mas empobreceu e tornou-se traficante. Tem uma irmã que sumiu com as jóias da família e encontra-se internada em sanatório. Ana e Max se amam, mas seu relacionamento é difícil e complicado. "Três" - Lorena reflete sobre a violência do mundo; assaltos a bancos; a morte de Rômulo; a profissão de Remo propiciando sua "fuga" para o exterior. Gostaria de poder alienar-se da "máquina desse mundo" violento (intertextualidade com o texto "A Máquina do mundo", de Carlos Drummond de Andrade), como uma ostra dentro de sua concha dourada (= seu quarto - refúgio). Rememora a chegada de Lia e A. Clara e a "invasão" das duas à sua privacidade, a amizade das três, apesar das personalidades opostas. Miúda e magra, mostra certa inveja da beleza de Ana Clara, apesar da diferença cultural... Através da visão de Lorena, conhecemos um pouco mais sobre as duas amigas: Lia de Melo Schultz tem um "pé" baiano, da mãe Diú (D. Dionísia) e outro berlinense, do pai seu Pô (Herr Paul, ex-oficial nazista). Herdou do pai o vigor germânico; da mãe, as "proporções gloriosas e a cabeleira de sol negro" e o açúcar da voz. É uma "mulher-hino", enquanto Lorena vê-se como uma civilizada, requintada "balada medieval" (ou "Magnólia desmaiada", para os colegas da Faculdade de Direito). Ana Clara "arrombou" a privacidade de Lorena, obrigando-a a verdadeiros exercícios de caridade cristã: mexe em tudo, nos livros, nos objetos pessoais. Tem olhos verdes, é modelo, linda, mas "de cuca embrulhada", deprimida e deprimente, juntadíssima, afetadíssima, mentirosíssima - "ni ange ni bête" - (nem anjo, nem demônio). Envolvida com sexo e drogas. Enquanto lancha ao sol, Lorena recorda o aborto de Aninha, resgatando a fábula da formiga e da cigarra (inconsciente, bagunceira, irresponsável), com quem compara a amiga. Recebe carta de Remo e pensa na morte de Rômulo. Filosofa sobre o lado omisso das relações humanas. Sonha em casar-se com M.N., pois sente-se frágil, insegura, precisando de um homem em tempo integral. Ao voltar para o quarto, pensa no colega Fabrízio, na noite chuvosa em que ele veio estudar mas preferiu envolvê-la nos braços, ameaçando sua virgindade; na falta de luz e subseqüente chegada de Lia, estragando o momento mágico com suas alpargatas molhadas e suas pesquisas sobre a vida das prostitutas, sua obsessão por Miguel. Lia sai, mas chega Ana Clara, e "se instala". Fim da noite para Fabrízio e Lorena. No dia seguinte, conheceu o Dr. M.N. na sua Faculdade e ganhou carona. Passa a viver aguardando seu telefonema, fantasiando um amor edipiano. "Quatro" - Max delira na cama. Gosta de Chopin, de Renoir. Conversa com a Coelha (A. Clara) sobre a riqueza passada, as viagens. Ana compara os diferentes níveis de artistas abstratos e reclama de estar lúcida - teria tomado aspirina? Lembra o passado de miséria e sonha com o futuro promissor como psicóloga de ricaços - "Nessa cidade as pessoas não se preocupam mais com nome, mas com o saco de ouro" (de que adianta o nome Vaz Leme de Lorena, descendente de bandeirantes?). Quer esquecer a mãe, os amantes, Jorge, Aldo, Sérgio... e o suicídio com formicida. Lembra-se da amiga Adriana, feia e vesga, mas com casa na praia, onde A. Clara tentou lavar a memória do passado num banho de mar. Max desperta e os dois deliram juntos. Ela está grávida e quer abortar. Ele deseja o filho, cuja voz diz ter ouvido. Vão ficar ricos e fazer cruzeiros pelo mundo. Ela é a gata borralheira, que tem encontro marcado com o noivo, que já deve estar inquieto com o atraso. "Cinco" - Lorena aguarda o telefonema de M.N., como sempre. Pensa em arte, em literatura (Dante, Beatriz) , em música (jazz), em cheiros (incenso); em morte (Rômulo); na mãe e no carro (teme que Lia seja metralhada dentro dele). Gostaria de poder sair de moto com Fabrízio, um cinema, um jantar... mas acha que ele deve estar na faculdade, incitando a greve e namorando uma poetazinha que resolveu seduzi-lo. Recebe a visita da irmã Bula e desconfia que esta é a autora das cartas anônimas, que falam coisas horríveis sobre as meninas e as freiras, para Madre Alix, a superiora. Enquanto serve licor e biscoito para a freira, relembra a morte de Rômulo, as manchetes nos jornais; pensa em Lia, em Simone de Beauvoir (escritora francesa), em segundo e terceiro sexos, em M.N., em Che Guevara, em morrer e renascer (segundo S. Marcos, "é necessário nascer de novo"). Recupera a teoria da amiga "terrorista" sobre a perda de pureza do baiano e do índio, e cita Gonçalves Dias. Coloca um Noturno de Chopin e serve constantemente vinho à freirinha. Quando tampa a garrafa, pensa na ferida de Rômulo, na fuga de Remo. Despede-se da Irmã Bula e de sua velhice sem sentido. "Seis" - Na sala imunda e mal iluminada onde montaram o "aparelho", Lia ("Rosa de Luxemburgo") e Pedro começam a separar material para o jornal. Conversam sobre experiências homossexuais; Jango; o nazismo; conceito de santidade; sobre Che Guevara; Martin Luther King (líder negro americano), engajamento político-social, atuação da Igreja progressista, casamento de padres, amor... Sai para uma operação noturna com o Bugre, que lhe conta sobre a próxima deportação de Miguel para a Argélia. De volta ao pensionato, feliz, conversa com Madre Alix: fala de seu amor pela família, do passado com saudade, do presente (fases da vida!...); de A. Clara, Max e seu envolvimento com drogas; na sua pretensa vocação para escritora; na desilusão com Miguel (muito cerebral) e Lorena (muito sofisticada). Madre Alix quer ajudá-las, mas sente-se impotente e teme por seu futuro. Sugere uma epígrafe para o livro de Lia e que serve para a vida das duas: "Sai da tua terra e da tua parentela e da casa de teu pai e vem para a terra que eu te mostrarei"(Gênesis). "Sete" - Irmã Clotilde leva frutas para Lorena, que se exercita na bicicleta. Falam sobre as duas Santas Teresas; sobre Tolstói; sobre homossexualismo (comenta-se no pensionato que I. Clotilde é lésbica); sobre beleza, ideais, filosofias de vida. A freira vai lavar as mãos e volta criticando a cor, a saúde e a alimentação das três amigas. Lorena anseia por beleza e um telefonema... Quer ficar só, mas a freira se demora na visita e no exame do quarto, dos animais, dos livros da moça. Esta lê um pedaço de um livro de Direito, cita frases em latim, enquanto pensa sobre o lado oculto das pessoas: a vida é um jogo de espelhos, e Lorena tem sede de autenticidade... Lia chega, a freira se vai. Devolve a chave do carro, conta sobre a viagem à Argélia, brinca de entrevistar Lorena (os assuntos de sempre: virgindade, casamento, M.N., Fabrízio, Pedro) e diz que esta é edipiana. Ambas mostram-se preocupadas com a gravidez de Ana "Turva" e sua dependência. Divertem-se no jardim e despedem-se no portão. Lia pede roupas para os "revolucionários". Lorena fica pensando na iniciação sexual das amigas e imagina como será sua "primeira vez"(M.N. é ginecologista, um "gentleman"). "Oito" - Ana Clara e Max acordam e conversam: ele e Lorena são "aristocratas", têm álbum de retratos... Os de Lorena estão na garagem do pensionato. Criticam o amante jovem de "mãezinha", Mieux. Max vai até a geladeira, come e volta a dormir. Ana pensa na desculpa que vai inventar para o noivo aceitar seu sumiço. Arruma-se e sai. Chove. São quase 11 h da noite. Não consegue táxi e aceita carona de um industrial em um Mercedes. Foge dele e refugia-se em um bar, onde encontra um velhote estranho que a convida para seu apartamento. Confundindo-o com "um pai" que nunca teve, segue-o. Apartamento de boêmio - retratos na parede, vitrola de corda, discos de tangos. Ana deita-se na cama e dorme, enquanto ele lê para ela textos sobre Napoleão, Rodolfo Valentino e tem orgasmo. Diz que o platonismo amoroso é a forma mais sutil e temível da paixão infinita e insaciável. "Nove" - Na banheira, Lorena filosofa sobre "ser" ou "estar" no mundo - na desintegração do ser humano na cidade grande, no papel do filósofo, do advogado, do médico, do psiquiatra. Sente todos os sintomas de todas as doenças mentais, apesar de charmosa e inteligente. Lembra-se da fazenda, das procissões em que se vestia de anjo. Rememora o primeiro encontro com M.N. e imagina as reações de mãezinha quando lhe contar sobre ele. Sai do banho emocionada e veste um robe. Chega o colega Guga, que lhe conta ter abandonado a família, a escola e estar vivendo em um porão, numa comunidade. Escandalizada com sua sujeira, Lorena corta-lhe as unhas, alerta-o sobre promiscuidade e lê para ele uma carta de M.N. Guga se excita e tenta amá-la. Ela quase cede, mas reage e ele se vai. Chega Lia. Conversam sobre filosofia, Lacan, auto-identificação, transferência de afetos. Lia quer provar que M.N. está mais para pai que para namorado, mas Lorena não admite. Falam sobre o telefonema de Herr Pô e da promessa de ajuda em dinheiro para a viagem. Lorena entrega a Lia um cheque em branco e pede-lhe para usar uma cruz na corrente, enquanto filosofa sobre Deus, religião, fé. Lia sai rindo. Lorena faz caretas. "Dez" - Lia pega carona com o motorista de mãezinha de Lorena e vai visitá-la. No caminho, consegue fundir a cabeça do senhor com seu discurso sobre família e liberdade. Recebida no hall pelo mordomo, fuma, examina os objetos e tapetes luxuosos, enquanto imagina sua viagem, a desunião da esquerda; vê-se na Argélia escrevendo seu diário e exaltando a Pátria. Mãezinha chora, na cama, a morte do psiquiatra Dr. Francis. Desajeitada, Lia tenta consolá-la e ouve suas lamúrias sobre a diferença de idade entre ela e Mieux, a impossibilidade de acompanhá-lo em seus programas, a dificuldade em aceitar a velhice e a morte. Lia lembra-se de sua família (tão equilibrada!) com saudade e amor. Mãezinha pergunta sobre os namoros de Lorena e Lia (acha-a masculinizada) e quer trazer a filha de volta à casa. Conta uma versão totalmente diferente sobre a morte de Rômulo (falência cardíaca, ainda bebê). Lia sente-se nauseada e pensa em ver o álbum de fotos na garagem: acha que mãezinha está escamoteando a tragédia por auto-defesa. Ganha roupas e mala para a viagem. "Onze" - Tarde da noite. Ana Clara chega transtornada ao quarto de Lorena, que está estudando para a prova no dia seguinte (a greve terminara). Entra arrastada, gritando de dor no peito e imunda. Lorena coloca-a na banheira - seu corpo está cheio de nódoas roxas e sofre alucinações com formigas, baratas, Deus e Max. Pede uísque e a bolsa. Delira. Lorena pensa no abismo entre o ser e o estar, num futuro feliz no campo, fora de sua casca. As novelas da vizinhança encobrem os ruídos e finalmente A. Clara adormece. Lorena toma chá. Finalmente Lia chega para preparar as malas (a viagem será na manhã seguinte) e Lorena vai até seu quarto. Conversam muito - sabem que estão se despedindo - e Lia conta-lhe que Guga virá procurá-la. Não vêem futuro na relação com M.N., que jamais abandonará a família, pois a "dor do remorso dói mais que a dor física"(Tolstói). Ao voltar para o quarto, Lorena tem um choque: A. Clara está morta. "Doze" - Lia corre aos acenos da amiga. Ao entrar, encontra Lorena massageando o peito de A. Clara, tentando revivê-la, enquanto reza. Lia pensa em chamar o pronto-socorro, em acordar todo mundo, em que poderia ter feito mais pela amiga, além dos "discursos". A bolsa de A. Clara está aberta: talvez dali ela tirara a própria morte. Lorena tem idéias e age: encomenda o corpo, reza em latim, veste e pinta A. Clara como se esta fosse a uma festa. Elimina todas as pistas comprometedoras para Aninha e Max, além das freiras do pensionato. As duas amigas carregam A. Clara através da noite providencialmente nebulosa e abandonam o corpo em um banco em uma linda praça do bairro. Voltam para o pensionato e separam-se: cada uma vai viver a própria vida. Lia no exílio. Lorena de volta para a casa de mãezinha, deixando sua concha para a futura hóspede, que vem do Pará. A ação do livro é prevalentemente interiorizada. Quase nada acontece na realidade exterior; a vidinha pacata e rotineira no pensionato, as conversas intermináveis, os estudos, as visitas das personagens ao redor do quarto de Lorena - centro daquele microcosmo -, poucos momentos na faculdade e no "aparelho"; as atitudes contraditórias de Ana Clara e sua morte; a solução dada pelas amigas para se livrarem de um cadáver comprometedor. Tudo se passa no âmbito da memória, enquanto as meninas resolvem o passado e evocam suas experiências em busca de auto-conhecimento, de solução para seus traumas e conflitos interiores, para a exorcização de seus "fantasmas". Personagens: Lorena Vaz Leme, filha de fazendeiros, culta, fina, aristocrática, descende de bandeirantes. É aluna na Faculdade de Direito e bastante estudiosa: cita com freqüência passagens da Bíblia, frases em latim, em francês, em espanhol, de filósofos variados, escritores e músicos. Demonstra cultura e educação esmerada, onde se fundem harmoniosamente o erudito e o popular. Assistiu impotente à derrocada da própria família e evoca freqüentemente esse passado, onde contrapõe os momentos felizes da infância, na fazenda, à morte acidental do irmão e a subseqüente desagregação do núcleo familiar - a fazenda vendida, o pai internado em sanatório, o irmão traumatizado pela culpa, a mãe vivendo de fantasias, terapias e falsas ilusões. Lorena tenta "equilibrar-se" fechando-se em uma concha dourada dentro do pensionato de freiras, onde pratica ginástica, faz chá, recebe cartas e presentes do irmão, visitas freqüentes de colegas, e de onde ajuda as amigas. Toma sol, lê, filosofa, mas pouco age. Segundo Lia, trata-se de uma burguesa alienada, apesar da bondade e do carinho com que recebe e ajuda a todos. Mas o mundo insiste em invadir sua privacidade - as amigas, as freiras, Fabrízio, Guga, o amor impossível pelo médico mais velho colocam-na em frequente conflito com o mundo exterior. Procurando viver de sonhos, perde várias oportunidades de realizar-se afetivamente e ser feliz. No entanto, diante da morte de A. Clara, consegue definir-se e agir positivamente, encontrando, por um lado, solução para o problema imediato; e, de outro, um possível desfecho para sua alienação: voltará para a casa da mãe, acabará por perceber a impossibilidade de um compromisso com M.N. e se abrirá para o amor de Guga, enquanto se resolve a enfrentar o mundo e a deixar sua "concha" definitivamente. Lia de Melo Schultz serve como contraponto à "finesse" de Lorena: veste-se mal, usa alpargatas, não gosta muito de banho, não cuida da aparência. Veio da Bahia para fugir da mãe superprotetora e do pai com um passado misterioso de ex-oficial nazista. Matricula-se no curso de Ciências Sociais (foco de agitações estudantis na década de 60), onde se envolve com um grupo militante da esquerda e apaixona-se por Miguel, que acaba preso. Sua preocupação consiste em angariar dinheiro e roupas para o "aparelho", e está sempre discursando contra a alienação da burguesia, das amigas, e a pobreza do Nordeste. Seu equilíbrio repousa sobre dois referenciais: em seu engajamento político (doação de amor aos amigos e à liberdade da Pátria) e na segurança que encontra no amor de Miguel e no apoio da família, que, mesmo à distância, protege-a e dispõe-se a ajudá-la em sua fuga para o exterior. Escolhe seu próprio caminho e resolve-se bem. Ana Clara Conceição apresenta o temperamento mais problemático e a personalidade mais inconsistente das três, apesar do fascínio que a força de suas evocações exerce sobre o leitor, as amigas e Madre Alix, principalmente. Filha de pai desconhecido, amargou uma infância carente, junto a uma mãe prostituída e constantemente machucada pelos sucessivos companheiros, um dos quais a induz ao suicídio pela ingestão de formicida. Ana foi seduzida por um dentista, que abusa sexualmente da mãe e da filha. Traumatizada, não consegue encontrar prazer nos seus relacionamentos amorosos. Permanece quase o livro todo na cama com o namorado Max, traficante que a viciou em drogas e, embora conversem muito, seu discurso aparece truncado - amam-se, mas não conseguem ser felizes. Sob o efeito das drogas, suas evocações são basicamente sinestésicas: ruídos (o roque-roque dos ratos e o barulho das baratas, nas construções), cheiros (do consultório do dentista, da bebida, do mar, do corpo de Max...), sensações variadas de frio e de calor entrecruzam-se enquanto ela desnuda seus traumas sem qualquer pudor e, fugindo à realidade, adia todas as soluções para "o ano que vem". Só que o peso da memória é mais forte: nem a aspirina; nem a ilusão de um noivo rico; nem a probabilidade da plástica restauradora da virgindade; nem a perspectiva de ascensão social através da Faculdade de Psicologia, da carreira de modelo, do dinheiro que conseguirá na clínica para a burguesia; nem o amor e os conselhos de Madre Alix e das amigas conseguem salvá-la. Seu fim é trágico: morre de overdose no quarto de Lorena, e, vestida e enfeitada, cumpre seu destino num banco de praça, sem prejudicar aquelas pessoas que conseguiram dar-lhe um pouco de afeto, mas não a paz de que tanto necessitava. Tempo: Subjaz à narrativa uma seqüência cronológica pouco marcada de alguns dias ou poucas semanas: o tempo é voluntariamente vago e difícil de precisar. O que prevalece é o tempo psicológico, pois tudo acontece através do entrecruzar da memória, da evocação do passado, da mistura com algumas ações no presente. Alguns fatos permitem a localização da obra no final dos anos 60, pois evocam as agitações sociais, as greves universitárias, a prisão e a tortura de militantes políticos sob o enrijecimento da ditadura militar, o crescimento agressivo da megalópole que tritura o jovem e esmaga sua individualidade, alienando-o, censurando-o e dificultando-lhe a busca de caminhos. Passado e presente fundem-se e nos traumas da memória encontram-se as explicações para os problemas existenciais das três meninas - símbolos de toda uma geração massacrada e alienada por forças do passado e das circunstâncias. Espaço: Oprimidas pela cidade grande e sua violência, as três meninas refugiam-se no Pensionato N. Senhora de Fátima, na região central de São Paulo. O quarto-concha de Lorena constitui-se no refúgio para onde as pessoas convergem em busca de conforto, de carinho, de segurança, de afeto e compreensão - um tipo de oásis dentro de um mundo desorganizado, caótico e extremamente ameaçador, onde "Deus vomita os mortos". Foco Narrativo: O foco narrativo em primeira pessoa é manipulado pela Autora de forma magistralmente cambiante: ele se desloca constantemente (e inesperadamente!) para o fluxo de consciência das três amigas, que se entrevistam, que se apresentam umas às outras e ao leitor, que refletem continuamente sobre si mesmas e umas sobre as outras, arrastando-nos nessas freqüentes invasões à privacidade de A. Clara, Lorena e Lião, que se vão desnudando paulatinamente diante de nós. Existe uma dificuldade inicial para a leitura até a identificação do estilo peculiar de cada personagem, pois cada uma delas se exprime dentro de seu "dialeto" coloquial - o discurso mais elaborado e culto de Lorena, o regionalismo politicamente engajado de Lião e o pensamento confuso e truncado de Ana "Turva". Superada essa dificuldade, o leitor mergulha de corpo e alma no universo fantástico dessas três meninas encantadoras, representantes autênticas daquele que foi um dos períodos mais importantes e difíceis para a emancipação da mulher, para a liberdade de pensamento e para a realização individual dentro de um universo politicamente conturbado. O romance As Meninas oferece-nos, de um lado, um painel saboroso das vivências de três pessoas em busca de si mesmas; de outro, uma amostra dos problemas cruciais que agitaram a juventude durante um dos períodos mais conturbados da história do Brasil, que Lygia Fagundes Telles teve a ousadia e a coragem de denunciar.
http://www.resumosdelivros.com.br/l/lygia-fagundes-telles/as-meninas/