terça-feira, 27 de julho de 2010

VIDAS SECAS - GRACILIANO RAMOS - RESUMO DA OBRA

 Caros Amigos, dentre as obras indicadas para os vestibulares, talvez a mais lida seja Vidas Secas. Por seu caráter envolvente, de narrativa simples e empolgante, com a construção de personagens que retratam não somente a luta e a fortç dos retirantes nordestinos, mas para além da leitura, s nossas terras áridas construídas na lida diária. Cada personagem encontra identificação, espelho nas nossas próprias características e situações vivenciadas. Desta maneira, a história vai se configurando, à medida que nos refazemos e emocionamos, numa reconstrução dialética do nosso olhar sobre o ser humano e a sua relação consigo, com a terra e com o mundo. As relações de poder, entre dominantes e dominados se fazem presentes em diversos momentos da obra, bem como, os conflitos entre sentimentos, valores e sobrevivência. Vale à pena ler e assistir Vidas Secas. 

Como sugestão, registrem os sentimentos de vocês à medida que forem lendo, para que o diálogo com a obra possa ser aproveitado depois para maiores reflexões.

A seguir, uma resumo sobre a obra e o vídeo, para auxiliá-los no entendimento da narrativa.

Saudações Literárias!

 Os Retirantes - Portinari

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

Os abalos sofridos pelo povo brasileiro em torno dos acontecimentos de 1930, a crise econômica provocada pela quebra da bolsa de valores de Nova Iorque, a crise cafeeira, a Revolução de 1930, o acelerado declínio do nordeste condicionaram um novo estilo ficcional, notadamente mais adulto, mais amadurecido, mais moderno que se marcaria pela rudeza, por uma linguagem mais brasileira, por um enfoque direto dos fatos, por uma retomada do naturalismo, principalmente no plano da narrativa documental, temos também o romance nordestino, liberdade temática e rigor estilístico.
Os romancistas de 30 caracterizavam-se por adotarem visão crítica das relações sociais, regionalismo ressaltando o homem hostilizado pelo ambiente, pela terra, cidade, o homem devorado pelos problemas que o meio lhe impõe.
Graciliano Ramos (1892-1953) nasceu em Quebrângulo, Alagoas. Estudou em Maceió, mas não cursou nenhuma faculdade. Após breve estada no Rio de Janeiro como revisor dos jornais "Correio da Manhã e A Tarde", passou a fazer jornalismo e política elegendo-se prefeito em 1927.
Foi preso em 1936 sob acusação de comunista e nesta fase escreveu "Memórias do Cárcere", um sério depoimento sobre a realidade brasileira. Depois do cárcere morou no Rio de Janeiro. Em 1945, integrou-se no Partido Comunista Brasileiro.
Graciliano estreou em 1933 com "Caetés", mas é São Berdado, verdadeira obra prima da literatura brasileira. Depois vieram "Angustia" (1936) e Vidas Secas (1938) inspirando-se em Machado de Assis.
Podemos justificar isto com passagens do texto:
"Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos."
"A caatinga estendia-se de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas"
"Resolvera de supetão aproveitá-lo (papagaio) como alimento..."
"Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarraram-se, somaram as suas desgraças e os seus       pavores".

ESTUDO DOS PERSONAGENS

Baleia - cadela da família, tratado como gente, muito querido pelas crianças.
Sinhá Vitória - mulher de Fabiano, sofrida, mãe de 2 filhos, lutadora e inconformada com a miséria em que vivem, trabalha muito na vida.
Fabiano - nordestino pobre, ignorante que desesperadamente procura trabalho, bebe muito e perde dinheiro no jogo.
Filhos - crianças pobres sofridas e que não tem noção da própria miséria que vivem.
Patrão - contratou Fabiano para trabalhar em sua fazenda, era desonesto e explorava os empregados.
Outros personagens: o soldado, seu Inácio (dono do bar).

ESTUDO DA LINGUAGEM

Tipo de discurso: indireto livre
Foco narrativo: terceira pessoa
Adjetivos, figuras de linguagem:
Metáfora: " - você é um bicho, Fabiano".
Prosopopéia: compara Baleia como gente

ANÁLISE DAS IDÉIAS

Comentário Crítico:
Esse livro retrata fielmente a realidade brasileira não só da época em que o livro foi escrito, mas como nos dias de hoje tais como injustiça social, miséria, fome, desigualdade, seca, o que nos remete a idéia de que o homem se animalizou sob condições sub-humanas de sobrevivência.

RESUMO DA OBRA

Mudança
Em meio à paisagem hostil do sertão nordestino, quatro pessoas e uma cachorrinha se arrastam numa peregrinação silenciosa _ _ . O menino mais velho, exausto da caminhada sem fim, deita-se no chão, incapaz de prosseguir, o que irrita Fabiano, seu pai, que lhe  dá estocadas com a faca no intuito de fazê-lo levantar. Compadecido da situação do pequeno, o pai toma-o nos braços e carrega-o, tornando a viagem ainda mais modorrenta _ .
A cadela Baleia acompanha o grupo de humanos agora sem a companhia do outro animal da família, um papagaio, que fora sacrificado na véspera a fim de aplacar a fome que se abatia sobre aquelas pessoas. Na verdade, era um papagaio estranho, que pouco falava, talvez porque convivesse com gente que também falava pouco _ _ .
Errando por caminhos incertos, Fabiano e família encontram uma fazenda completamente abandonada. Surge a intenção de se fixar por ali. Baleia aparece com um preá entre os dentes, causando grande alegria aos seus donos. Haveria comida. Descendo ao bebedouro dos animais, em meio à lama, Fabiano consegue água. Há uma alegria em seu coração, novos ventos parecem soprar para a sua família. Pensa em Seu Tomás da bolandeira.  Pensa na mulher e nos filhos.
A inesperada caça é preparada, o que garante um rápido momento de felicidade ao grupo. No céu, já escuro, uma nuvem - sempre um sinal de esperança. Fabiano deseja estabelecer-se naquela fazenda. Será o dono dela. A vida melhorará para todos _ .
Fabiano  
Em vão Fabiano procura por uma raposa. Apesar do fracasso da empreitada, ele está satisfeito. Pensa na situação da família, errante, passando fome, quando da chegada àquela fazenda. Estavam bem agora _ _ . Fabiano se orgulha de vencer as dificuldades tal qual um bicho. Agora ele era um vaqueiro, apesar de não ter um lugar próprio para morar. A fazenda aparentemente abandonada tinha um dono, que logo aparecera e reclamara a posse do local. A solução foi ficar por ali mesmo, servindo ao patrão, tomando conta do local. Na verdade, era uma situação triste, típica de quem não tem nada e vive errante.  Sentiu-se novamente um animal, agora com uma conotação negativa. Pouco falava, admirava e tentava imitar a fala difícil das pessoas da cidade. Era um bicho _ .
A uma pergunta de um dos filhos, Fabiano irrita-se. Para que perguntar as coisas? Conversaria com Sinha Vitória sobre isso. Essas coisas de pensamento não levavam a nada. Seu Tomás da bolandeira, apesar de admirado por Fabiano pelas suas palavras difíceis, não acabara como todo mundo? As palavras, as idéias, seduziam e cansavam Fabiano.
Pensou na brutalidade do patrão, a tratá-lo como um traste. Pensou em Sinha Vitória e seu desejo de possuir uma cama igual à de Seu Tomás da bolandeira. Eles não poderiam ter esse luxo, cambembes que eram. Sentiu-se confuso. Era um forte ou um fraco, um homem ou um bicho _ ? Sentia, por vezes, ímpeto de lutador e fraqueza de derrotado.
Lembrando dos meninos, novamente, achou que, quando as coisas melhorassem, eles poderiam se dar ao luxo daquelas coisas de pensar. Por ora, importante era sobreviver. Enquanto as coisas não melhorassem, falaria com Sinha Vitória sobre a educação dos pequenos.
Cadeia
Fabiano vai à feira comprar mantimentos, querosene e um corte de chita vermelha. Injuriado com a qualidade do querosene e com o preço da chita, resolve beber um pouco de pinga  na bodega de seu Inácio. Nisso, um soldado amarelo convida-o para um jogo de cartas. Os dois acabam perdendo, o que irrita o soldado, que provoca Fabiano quando esse está de partida. A idéia do jogo havia sido desastrosa. Perdera dinheiro, não levaria para casa o prometido. Fabiano, agora, pensava em como enganar Sinha Vitória, mas a dificuldade de engendrar um plano o atormentava.
O soldado, provocador, encara o vaqueiro e barra-lhe a passagem. Pisa no pé de Fabiano que, tentando contornar a situação à sua maneira, agüenta os insultos até o possível, terminando por xingar a mãe do soldado amarelo. Destacamento à sua volta. Cadeia. Fabiano é empurrado, humilhado publicamente.
No xadrez, pensa por que havia acontecido tudo aquilo com ele. Não fizera nada, se quisesse até bateria no mirrado amarelo, mas ficara quieto. Em meio a rudes indagações, enfureceu-se, acalmou-se, protestou inocência _ . Amolou-se com o bêbado e com a quenga que estavam em outra cela. Pensou na família. Se não fosse Sinha Vitória e as crianças, já teria feito uma besteira por ali mesmo. Quando deixaria que um soldadinho daqueles o humilhasse tanto? Arquitetou vinganças, gritou com os outros presos e, no meio de sua incompreensão com os fatos, sentiu a família como um peso a carregar _ .
Sinha Vitória
Naquele dia, Sinha Vitória amanhecera brava. A noite mal dormida na cama de varas era o motivo de sua zanga. Falara pela manhã, mais uma vez, com Fabiano sobre a dificuldade de dormir naquela cama. Queria uma cama de lastro de couro, como a de Seu Tomás da bolandeira, como a de pessoas normais.
Havia um ano que discutia com o marido a necessidade de uma cama decente e, em meio a uma briga por causa das "extravagâncias" de cada um, Sinha Vitória certa vez ouviu Fabiano dizer-lhe que ela ficava ridícula naqueles sapatos de verniz, caminhando como um papagaio, trôpega, manca. A comparação machucou-a _ .
Agora, ela irritava-se com o ronco de Fabiano ao lembrar-se de suas palavras. Circulando pela casa, fazia suas tarefas em meio a reza e a atenção ao que acontecia lá fora. Por pensar ainda na cama e na comparação maldosa de Fabiano, quase esqueceu de pôr água na comida. Veio-lhe a lembrança do bebedouro em que só havia lama. Medo da seca. Olhou de novo para seus pés e inevitavelmente achou Fabiano mau _ . Pensou no papagaio e sentiu pena dele _ .
Lá fora, os meninos brincavam em meio à sujeira. Dentro de casa, Fabiano roncava forte, seguro, o que indicava a Sinha Vitória que não deveria haver perigo algum por ali. A seca deveria estar longe _ . As coisas, agora, pareciam mais estáveis, apesar de toda a dificuldade. Lembrou-se de como haviam sofrido em suas andanças. Só faltava uma cama. No fundo, até mesmo Fabiano queria uma cama nova.

O Menino mais novo 
A imagem altiva do pai foi que lhe fez surgir a idéia. Fabiano, armado como vaqueiro, domava a égua brava com o auxílio de Sinha Vitória. O espetáculo grosseiro excitava o menor dos garotos, impressionado com a façanha do pai e disposto a fazer algo que também impressionasse o irmão mais velho e a cachorra Baleia _ . No dia seguinte, acordou disposto a imitar a façanha do pai. Para tanto, quis comunicar a intenção ao mano, mas evitou, com medo de ser ridicularizado.
Quando as cabras foram ao bebedouro, levadas pelo menino mais velho e por Baleia,  o pequeno tomou o bode como alvo de sua ação. Sentia-se altivo como Fabiano quando montava. No bebedouro, o garoto despencou da ribanceira sobre o animal, que o repeliu. Insistente, tentou se aprumar mas foi sacudido impiedosamente, praticando um involuntário salto mortal que o deixou, tonto, estatelado ao chão. O irmão mais velho ria sem parar do ridículo espetáculo, Baleia parecia desaprovar toda aquela loucura _ . Fatalmente seria repreendido pelos pais. Retirou-se humilhado, alimentando a raivosa certeza de que seria grande, usaria roupas de vaqueiro, fumaria cigarros e faria coisas que deixariam Baleia e o irmão admirados.
O Menino mais velho
Aquela palavra tinha chamado a sua atenção: inferno. Perguntou à Sinha Vitória, vaga na resposta. Perguntou a Fabiano, que o ignorou. Na volta à Sinha Vitória, indagou se ela já tinha visto o inferno. Levou um cascudo e fugiu indignado. Baleia fez-lhe companhia tentando alegrá-lo naquela hora difícil.
Decidiu contar à cachorrinha uma história, mas o seu vocabulário era muito restrito, quase igual ao do papagaio que morrera na viagem _ . Só Baleia era sua amiga naquele momento. Por que tanta zanga com uma palavra tão bonita ? A culpa era de Sinha Terta, que usara aquela palavra na véspera, maravilhando o ouvido atento do garoto mais velho.
Olhou para o céu e sentiu-se melancólico. Como poderiam existir estrelas? Pensou novamente no inferno. Deveria ser, sim, um lugar ruim e perigoso, cheio de jararacas e pessoas levando cascudos e pancadas com a bainha da faca _ . Sempre intrigado, abraçou-se à Baleia como refúgio _ .
Inverno
Todos estavam reunidos em volta do fogo, procurando aplacar o frio causado pelo vento e pela água que agitava a paisagem fora da casa. Chegara o inverno, e isso reunia a família próxima à fogueira. Pai e mãe conversavam daquele jeito de sempre, estranho, e os meninos, deitados, ficavam ouvindo as histórias inventadas por Fabiano, de feitos que ele nunca tinha realizado, aventuras nunca vividas. Quando o mais velho levantou-se para buscar mais lenha, foi repreendido severamente pelo pai, aborrecido pela interrupção de sua narrativa.
A chuva dava à família a certeza de que a seca não chegaria por enquanto. Isso alegrava Fabiano. Sinha Vitória, porém, temia por uma inundação que os fizesse subir ao morro, novamente errantes. A água, lá fora, ampliava sua invasão.
Fabiano empolgava-se mais ainda em contar suas façanhas _ . A chuva tinha vindo em boa hora. Após a humilhação na cidade, decidira que, com a chegada da seca, abandonaria a família e partiria para a vingança contra o soldado amarelo e demais autoridades que lhe atravessassem o caminho. A chegada das águas interrompera aqueles planos sinistros. Em meio à narrativa empolgada, Fabiano imaginava que as coisas melhorariam a partir dali; quem sabe, Sinha Vitória até pudesse ter a cama tão desejada.
Para o filho mais novo, o escuro e as sombras geradas pela fogueira faziam da imagem do pai algo grotesco, exagerado. Para o mais velho, a alteração feita por Fabiano na história que contava era motivo de desconfiança. Algo não cheirava bem naquele enredo _ . Sempre pensativo, o menino mais velho dormiu pensando na falha do pai e nos sapos que estariam lá fora, no frio.
Baleia, incomodada com a arenga de Fabiano, procurava sossego naquela paisagem interior. Queria dormir em paz, ouvindo o barulho de fora _ .
Festa
A família foi à festa de Natal na cidade. Todos vestidos com suas melhores roupas, num traje pouco comum às suas figuras, o que lhes dava um ar ridículo. A caminhada longa tornava-se ainda mais cansativa por causa daquelas roupas e sapatos apertados. O mal-estar era geral, até que Fabiano cansou-se da situação e tirou os sapatos, metendo as meias no bolso, livrando-se ainda do paletó e da gravata que o sufocava. Os demais fizeram o mesmo. Voltaram ao seu natural. Baleia juntou-se ao grupo _ .
Chegando à cidade, foram todos lavar-se à beira de um riacho antes de se integrarem à festa. Sinha Vitória carregava um guarda-chuva. Fabiano marchava teso. Os meninos maravilham-se, assustados, com tantas luzes e gente. A igreja, com as imagens nos altares, encantou-os mais ainda. O pai espremia-se no meio da multidão, sentindo-se cercado de inimigos. Sentia-se mangado por aquelas pessoas que o viam em trajes estranhos à sua bruta feição. Ninguém na cidade era bom. Lembrou-se da humilhação imposta pelo soldado amarelo quando estivera pela última vez na cidade.
A família saiu da igreja e foi ver o carrossel e as barracas de jogos. Como Sinha Vitória negou-lhe uma aposta no bozó, Fabiano afastou-se da família e foi beber pinga _ . Embriagando-se, foi ficando valente. Imaginava, com raiva, por onde andava o soldado amarelo. Queria esganá-lo. No meio da multidão, gritava, provocava um inimigo imaginário _ . Queria bater em alguém, poderia matar se fosse o caso _ . Vez ou outra, interrompia suas imprecações para uma confusa reflexão. Cansado do seu próprio teatro, Fabiano deitou no chão, fez das suas roupas um travesseiro e dormiu pesadamente.
Sinha Vitória, aflita, tinha que olhar os meninos, não podia deixar o marido naquele estado. Tomando coragem para realizar o que mais queria naquele momento, discretamente esgueirou-se para uma esquina e ali mesmo urinou. Em seguida, para completar o momento de satisfação, pitou num cachimbo de barro pensando numa cama igual à de seu Tomas da bolandeira .
Os meninos também estavam aflitos. Baleia sumira na confusão de pessoas, e o medo de que ela se perdesse e não mais voltasse era grande. Para alívio dos pequenos, a cachorrinha surge de repente e acaba com a tensão. Restava, agora, aos pequenos, o maravilhamento com tudo de novo que viam. O menor perguntou ao mais velho se tudo aquilo tinha sido feito por gente. A dúvida do maior era se todas aquelas coisas teriam nome. Como os homens poderiam guardar tantas palavras para nomear as coisas _ ?
Distante de tudo, Fabiano roncava e sonhava com soldados amarelos.
Baleia
Pêlos caídos, feridas na boca e inchaço nos beiços debilitaram Baleia de tal modo que Fabiano achou que ela estivesse com raiva. Resolveu sacrificá-la. Sinha Vitória recolheu os meninos, desconfiados,  a fim de evitar-lhes a cena.
Baleia era considerada como um membro da família, por isso os meninos protestaram, tentando sair ao terreiro para impedir a trágica atitude do pai. Sinha Vitória lutava com os pequenos, porque aquilo era necessário, mas aos primeiros movimentos do marido para a execução, lamentou o fato de que ele não tivesse esperado mais para confirmar a doença da cachorrinha.
Ao primeiro tiro, que pegou o traseiro da cachorra e inutilizou-lhe uma perna, as crianças começaram a chorar desesperadamente.
Começou, lá fora, o jogo estratégico da caça e do caçador. Baleia sentia o fim próximo, tentava esconder-se e até desejou morder Fabiano. Um nevoeiro turvava a visão da cachorrinha, havia um cheiro bom de preás. Em meio à agonia, tinha raiva de Fabiano, mas também o via como o companheiro de muito tempo. A vigilância às cabras, Fabiano, Sinha Vitória e as crianças surgiam à Baleia em meio a uma inundação de preás que invadiam a cozinha _ . Dores e arrepios. Sono. A morte estava chegando para Baleia.
Contas
Fabiano retirava para si parte do que rendiam os cabritos e os bezerros. Na hora de fazer o acerto de contas com o patrão, sempre tinha a sensação de que havia sido enganado. Ao longo do tempo, com a produção escassa, não conseguia dinheiro e endividava-se.
Naquele dia, mais uma vez Fabiano pedira a Sinha Vitória para que ela fizesse as contas. O patrão, novamente, mostrou-lhe outros números. Os juros causavam a diferença, explicava o outro. Fabiano reclamou, havia engano, sim senhor, e aí foi o patrão quem estrilou. Se ele desconfiava, que fosse procurar outro emprego. Submisso, Fabiano pediu desculpas e saiu arrasado, pensando mesmo que Sinha Vitória era quem errara.
Na rua, voltou-lhe a raiva. Lembrou-se do dia em que fora vender um porco na cidade e o fiscal da prefeitura exigira o pagamento do imposto sobre a venda. Fabiano desconversou e disse que não iria mais vender o animal. Foi a uma outra rua negociar e, pego em flagrante, decidiu nunca mais criar porcos _ .
Pensou na dificuldade de sua vida. Bom seria se pudesse largar aquela exploração. Mas não podia! Seu destino era trabalhar para os outros, assim como fora com seu pai e seu avô.
As notas em sua mão impressionavam-no. "Juros", palavra difícil que os homens usavam quando queriam enganar os outros. Era sempre assim: bastavam palavras difíceis para lograr os menos espertos. Contou e recontou o dinheiro com raiva de todas aquelas pessoas da cidade. Sinha Vitória é que entendia seus pensamentos.
Teve vontade de entrar na bodega de seu Inácio e tomar uma pinga. Lembrou-se da humilhação passada ali mesmo e decidiu ir para casa. o céu, várias estrelas. Deixou de lado a lembrança dos inimigos e pensou na família. Sentiu dó da cachorra Baleia. Ela era um membro da família.
O Soldado Amarelo
Procurando uma égua fugida, Fabiano meteu-se por uma vereda e teve o cabresto embaraçado na vegetação local. Facão em punho, começou a cortar as quipás e palmatórias que impediam o prosseguimento da busca. Nesse momento, depara-se com o soldado amarelo que o humilhara um ano atrás _ . O cruzar de olhos e o reconhecimento durou fração de segundos. O suficiente para que Fabiano esfolasse o inimigo. O soldado claramente tremia de medo. Também reconhecera o desafeto antigo e pressentia o perigo.
Fabiano irritou-se com a cena. O outro era um nadica. Poderia matá-lo com as mãos, sem armas, se quisesse. A fragilidade do outro aos poucos foi aplacando a raiva de Fabiano. Ponderou que ele mesmo poderia ter evitado a noite na cadeia se não tivesse xingado a mãe do amarelo. No meio daquela paisagem isolada e hostil, só os dois, e se ele pedisse passagem ao soldado? Aproximou-se do outro pensando que já tinha sido mais valente, mais ousado. Na verdade, na fração de segundo interminável Fabiano ia descobrindo-se amedrontado. Se ele era um homem de bem, para que arruinar a sua vida matando uma autoridade? Guardaria forças para inimigo maior.
Sentindo o inimigo acovardado, o soldado ganhou força. Avançou firme e perguntou o caminho. Fabiano tirou o chapéu numa reverência e ainda ensinou o caminho ao amarelo.
O Mundo Coberto de Penas
A invasão daquele bando de aves denunciava a chegada da seca. Roubavam a água do gado, matariam bois e cabras. Sinha Vitória inquietou-se. Fabiano quis ignorar, mas não pôde; a mulher tinha razão. Caminhou até o bebedouro, onde as aves confirmavam o anúncio da seca. Eram muitas. Um tiro de espingarda eliminou cinco, seis delas, mas eram muitas. Fabiano tinha certeza, agora, de uma nova peregrinação, uma nova fuga.
Era só desgraça atrás de desgraça. Sempre fugido, sempre pequeno. Fabiano não se conformava, pensava com raiva no soldado amarelo, achava-se um covarde, um fraco. Irado, matou mais e mais aves. Serviriam de comida, mas até quando ? Quem sabe a seca não chegasse...Era sempre uma esperança. Mas o céu escuro de arribações só confirmava a triste situação _ . Elas cobriam o mundo de penas, matando o gado, tocando a ele e à família dali, quem sabe comendo-os.
Recolheu os cadáveres das aves e sentiu uma confusão de imagens em sua cabeça. Aquele lugar não era bom de se viver. Lembrou-se de Baleia, tentou se convencer de que não fizera errado em matá-la, pensou de novo na família e no que as arribações representavam. Sim, era necessário ir embora daquele lugar maldito _ . Sinha Vitória era inteligente, saberia entender a urgência dos fatos.
Fuga
O céu muito azul, as últimas arribações e os animais em estado de miséria indicavam a Fabiano que a permanência naquela fazenda estava esgotada. Chegou um ponto em que, dos animais, só sobrou um bezerro, que foi morto para servir de comida na viagem que se faria no dia seguinte.
Partiram de madrugada, abandonando tudo como encontraram. O caminho era o do sul. O grupo era o mesmo que errava como das outras vezes. Fabiano, no fundo, não queria partir, mas as circunstâncias convenciam-no da necessidade.
A vermelhidão do céu, o azul que viria depois assustavam Fabiano _ . Baleia era uma imagem constante em seus confusos pensamentos. Sinha Vitória também fraquejava. Queria, precisava falar _ . Aproximou-se do marido e disse coisas desconexas, que foram respondidas no mesmo nível de atrapalhação.

Na verdade, ele gostou que ela tivesse puxado conversa. Ela tentou animar o marido, quem sabe a vida fosse melhor, longe dali, com uma nova ocupação para ele. Marido e mulher elogiam-se mutuamente; ele é forte, agüenta caminhar léguas, ela, tem pernas grossas e nádegas volumosas, agüenta também. A cidade, talvez, fosse melhor. Até uma cama poderiam arranjar. Por que haveriam de viver sempre como bichos fugidos _ ?
Os meninos, longe, despertavam especulações ao casal. O que seriam quando crescessem? Sinha Vitória não queria que fossem vaqueiros. O cansaço ia chegando à medida que avançava a caminhada, e assim houve uma parada para descanso. Novamente marido e mulher conversavam, fazendo planos, temendo o mau agouro das aves que voavam no céu.
Sinha Vitória acordou os pequenos, que dormiam, e seguiu-se viagem. Fabiano ainda admirou a vitalidade da mulher. Era forte mesmo! Assim, a cada passo arrastado do grupo um mundo de novas perspectivas ia sendo criado. Sinha Vitória falava e estimulava Fabiano. Sim, deveria haveria uma nova terra, cheia de oportunidades, distante do sertão a formar homens brutos e fortes como eles.
FONTE: 

quinta-feira, 8 de julho de 2010

HORA DO CONTO

Caros amigos,
Nunca me apropriei tanto de um conto quanto desse. Esta sensação se deu quanto terminei de ler O Caçador de Pipas. Ao terminar de ler, deitei de bruços na cama, com o livro docemente acolhido sob minha cabeça, como se fosse travesseiro ou o peito da pessoa amada. Fiquei ali algum tempo ruminando, sentindo as palavras ditas, a narrativa, as personagens vividas no meu coração, as frases mais fortes: "Você pode ser bom denovo" e "Por você faria isso mil vezes". Nossa, a paixão pela obra, pela história e tudo que nela contém me fez lembrar este conto de Clarice, o qual já era outra paixão literária há muito tempo, mas nunca tão vivenciada quanto agora.  Por isso, compartilho com vocês o conto e os provoco para ler também, O Caçador de Pipas, de Khaled Housseini.

 

Boa Leitura
Saudações Literárias


FELICIDADE CLANDESTINA - CLARICE LISPECTOR



Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria. Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade". Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia. Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu nao vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam. No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez. Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte"com ela ia se repetir com meu coração batendo. E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra. Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. As vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados. Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler! E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer. Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo. Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada. As vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante. ***