sexta-feira, 17 de abril de 2009

Intertextualidades de As Meninas

Caros amigos,

Lygia Fagundes Telles, através da personagem Lorena, faz uma intertextualidade com A MÁQUINA DO MUNDO de Carlos Drummond de Andrade, no capítulo 02 e A DIVINA COMÉDIA de Dante, ao citar Beatriz.

Leiam a seguir o Poema A Máquina do Mundo e um estudo fabuloso sobre os seus aspectos textuais e intertextuais.

A Máquina do Mundo

Carlos Drummond de Andrade



E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

FIGURAÇÕES ALEGÓRICAS DA MÁQUINA DO MUNDO

Ana Lúcia M. de Oliveira (UERJ)

Esta comunicação pretende enfocar o poema “A máquina do mundo”, de Carlos Drummond de Andrade, a partir de um exame da sua configuração alegórica. O ponto de partida será uma análise comparativa de textos seminais que desenvolveram a alegoria da máquina cósmica, especialmente A Divina Comédia e Os Lusíadas. A partir da análise do dialogismo poético em relação a essa tópica, buscaremos detectar a grande diferença introduzida pelo poema drummondiano, em que a visão transcendental oferecida pela máquina, em vez de provocar surpresa e admiração, é desinteressadamente recusada pelo eu poético.

Em “A máquina do mundo”, publicado no livro Claro enigma (Andrade, 1973: 197-200), encontramos um arcabouço narrativo em primeira pessoa. Apesar de longo (com 96 versos), o poema apresenta apenas seis períodos, que estruturam três seqüências narrativas básicas. A primeira está representada nos nove primeiros versos, que delineiam a moldura espácio-temporal - “fecho da tarde” (v. 3) e “estrada de Minas, pedregosa” (v. 2) - do acontecimento que será narrado. Na segunda seqüência, ocupando a maior parte do poema, a aparição da máquina e seu discurso de início se apresentam discretamente, mantendo o clima de introspecção do solitário caminhante revelado na primeira seqüência: “Abriu-se majestosa e circunspecta,/ Sem emitir um som que fosse impuro/ nem um clarão maior que o tolerável” (vv. 13-15). A máquina o convida a se aplicar “sobre o pasto inédito/ da natureza mítica das coisas” (vv. 29-30); entretanto, por não obter resposta, muda de tom, tornando-se mais categórica:

olha, repara, ausculta: essa riqueza

sobrante a toda pérola, essa ciência

sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,

esse nexo primeiro e singular,

[...]

vê, contempla,

abre teu peito para agasalhá-lo. (vv. 40-48)

Nesse fragmento do discurso da máquina, podemos observar os recursos utilizados para seduzir o viajante. Em primeiro lugar, a reiteração de verbos no imperativo dentro do mesmo campo semântico - “olha”, “repara”, “vê”, “contempla” - serve de reforço ao convite inicial. Também a enumeração dos elementos a serem revelados assim como o número de adjetivos usados para descrevê-los - “sublime”, “formidável”, “total”, “primeiro”, “singular” - reforçam o pedido. Finalmente, um apelo emotivo, ao ordenar que o coração do poeta acolha o que sua mente não se dispõe a aceitar. No entanto, todos esses recursos revelam-se inúteis. Para um apelo visual, a recusa se dá no mesmo nível: por não querer ver os conhecimentos oferecidos pela máquina, o viajante drummondiano baixa “os olhos incurioso, lasso” (v. 88). Desdenhada a visão da grande máquina, instaura-se uma nova seqüência, que retoma a situação inicial: o viajante continua a sua jornada, agora totalmente imerso nas trevas, as quais indiciam o tempo decorrido entre o surgimento da máquina no fecho da tarde e o seu desaparecimento já na noite, e também simbolizam o isolamento total do eu, a sua recusa do conhecimento e da comunicação com o engenho sobrenatural.

Destaque-se ainda que a narração começa in media res, no meio de uma caminhada numa estrada de Minas, em que o viajante encontra-se envolto por sentimentos de introspecção e renúncia, atribuídos posteriormente ao cansaço de uma busca não concluída, à procura de um conhecimento jamais encontrado. Esses sentimentos determinarão sua atitude posterior face à máquina bem como a retomada de sua solitária caminhada na seqüência final. Tal retorno ao ponto de partida denota a impossibilidade de superação de sua condição primeira e ressalta também o continuum da caminhada, não interrompida nem após revelações tão surpreendentes. Concretizando, portanto, a volta circular ao início, há a repetição quase total do segundo verso no penúltimo terceto: “sobre a estrada de Minas, pedregosa”.

Observemos mais de perto o viajante desse poema. Ele é o ser que caminha sozinho, identificando-se com a paisagem árdua através da escuridão maior, vinda dos montes e de seu próprio ser desenganado (vv. 8-9). Em seu isolamento, nega a busca existencial, a tentativa de compreensão do enigma do mundo, que antes o caracterizara. E, recusando a revelação suprema oferecida pela máquina, abdica, portanto, de um conhecimento metafísico, como podemos observar nos seguintes versos: “pela mente exausta de mentar/ toda uma realidade que a transcende” (vv. 18-19) e “quantos sentidos e intuições restavam/ a quem de os ter usado os já perdera/ e nem desejaria recobrá-los” (v. 23-25). Desse modo, a aparição do impedimento momentâneo de sua caminhada sobrevém quando já estava definida a sua nova postura face aos obstáculos cotidianos com que já se acostumara e que ocasionaram o seu estado de desistência.

É importante enfatizar a correlação entre a postura de isolamento do viajante e o ambiente físico descrito no poema, entre seu “passo seco” e a “estrada pedregosa”. O caminho deserto e árido constitui o elemento topológico a partir do qual ele se define como ser solitário, índice do seu conflito não só existencial, como também epistemológico. Afastado de seus semelhantes, o homem se reflete na paisagem através de signos de isolamento e dificuldade, e tal jogo de espelhos é reiterado no plano acústico, em que o sino rouco se mistura ao som seco de seus sapatos (v. 4). Lentos são seus passos e também os movimentos das aves (v. 5-7), e a escuridão final apresenta-se, simultaneamente, segundo José Guilherme Merquior, “como sombra do céu e do homem” (1975: 83). Sendo pedregosa, a estrada retoma o tema da dificuldade, do obstáculo no caminho, tão caro à obra de Drummond, e exemplificado no conhecido poema “no meio do caminho” (1973: 12), que aliás apresenta a mesma descrição metonímica de cansaço visual-epistemológico - “na vida de minhas retinas tão fatigadas” (idem, ibid.) - presente no viajante de “pupilas gastas na inspeção...” (v. 16).

Passemos agora a uma breve discussão do diálogo intertextual que se estabelece no poema em foco, esboçando uma comparação com a Divina Comédia, com Os Lusíadas e com outros textos de Drummond.

Inicialmente, destaque-se que a própria Divina Comédia foi elaborada a partir de relações intertextuais com o sistema épico precedente. Como se sabe, sua concepção geral baseia-se num encontro espiritual do poeta com Virgílio, que o conduz numa viagem através do Inferno e do Purgatório, até atingir o Paraíso, onde o poeta passa a ser conduzido por Beatriz. Tal ligação com Virgílio, segundo Ernst Curtius, é, historicamente, “a confirmação do laço que a Idade Média Latina criou entre o mundo antigo e o moderno” (1973: 358).

Vários críticos já observaram alguns paralelos temáticos e formais entre o poema drummondiano e o de Dante. Segundo Emanuel de Moraes, no primeiro “situa-se o poeta em face do problema do destino, e, pela localização paisagística do ser cuja alma expressa, sua poesia se conduz pela mesma linha antes singrada por Dante e Poe na desensofrida busca do mistério” (In: Brayner, 1977: 120). Para Affonso Romano de Sant´Anna, a semelhança se dá no nível formal do poema, composto em “terzas, que lembram os degraus com que Dante subiu a interpretar o mistério do Inferno-Purgatório-Paraíso” (1980: 243). Também Haroldo de Campos considera tal poema “um ensaio de poesia metafísica (quem sabe até de secreta teodicéia laica), no qual se recorta o perfil dantesco” (In: Brayner, 1977: 249).

De fato, alguns pontos são passíveis de comparação entre as duas obras. Quanto ao tema, ambas apresentam uma situação semelhante: um viajante solitário na noite a quem é dada uma forma de revelação transcendental. Mas, a partir dessa situação temática única, os poemas desenvolvem caminhos radicalmente diferentes. Pertencendo a uma época para a qual Deus ainda não havia morrido, o poema de Dante descreve um ser humano com uma cosmovisão teocêntrica que, como tal, busca a união com o sagrado. Diante da grande revelação divina, o poeta-viajante manifesta uma alegria intensa, uma forma de êxtase místico-espiritual. Já o caminhante drummondiano não aspira a uma visão mística, uma vez que esta não lhe satisfaz mais, pois “a fé se abrandara” (v. 72). Recusando a visão proposta pela máquina, reafirma a laicização do conhecimento moderno. Desdenha a oferta maravilhosa e segue seu caminho difícil, porque não pode aceitar o que não se origina de “seu próprio ser desenganado” (v. 9).

Quanto à parte formal, ambos se apresentam estruturados em tercetos. A terza rima foi criada por Dante como uma forma apropriada à sua poesia, devido à referência simbólica à Santíssima Trindade. Como reflexo desse simbolismo de base católica, encontramos vários elementos triádicos: além da terza rima, os três cántiche, os trinta e três cánti em cada cántica, as nove divisões de cada plano e, inclusive, o próprio ano em que a narrativa se desenrola: 1300. Já Drummond empregou os tercetos clássicos, mas não no modelo encadeado e rimado de Dante, afastando-se da disposição estrófica e da cadeia de rimas triplas interligadas do poema italiano. Não assumindo uma postura mística em sua concepção da máquina do mundo, o poeta mineiro utiliza os tercetos como um simples recurso formal, dissociando-os do simbolismo religioso manifesto na Divina Comédia. Na aguda formulação de Alfredo Bosi, a “Máquina do mundo” foi “escrita segundo o modelo da terza rima dantesca, mas... sem rima, já que seus decassílabos são rigorosamente brancos” (1988: 95).

Apesar de encontrarmos na obra de Drummond constantes referências a Camões, os estudos comparativos entre os dois poetas se concentram na “máquina do mundo” e n´Os Lusíadas.

O episódio de revelação da máquina, feita pela ninfa Tétis a Vasco da Gama e seus companheiros, constitui a parte final da epopéia lusa, realizando uma síntese alegórica da cosmovisão não só do autor como também de sua própria época. Com efeito, “a epopéia camoniana foi conseqüência da própria evolução cultural e científica do país. Surgiu no momento adequando, quando era esperada, [...] como coroamento do esforço de toda uma coletividade que declinava” (Teles, 1976: 37). Expressiva de um dado momento histórico, essa obra formula uma síntese da cultura medieval com a renascentista, que se reflete na concepção da máquina do mundo, não só nos níveis histórico - os feitos dos navegantes portugueses - e científico - a teoria cosmológica ptolomaica ainda corrente na época -, como também no ficcional - o entrelaçamento do maravilhoso pagão e do cristão, típico do momento de transição representado pelo século XVI. Esse momento de transição se evidencia em certos conflitos básicos que permeiam a obra, como, por exemplo, o contraste entre o sentimento da dignidade do homem, que, com sua ousadia consegue quebrantar os “vedados térmicos”, candidatando-se por isso à divinização, e o da sua insignificância de “bicho da terra tão pequeno”.

Por estar estritamente relacionada à forma mentis do seu tempo, a máquina camoniana diverge em vários aspectos da máquina drummondiana, satisfazendo, conforme assinalou Silviano Santiago (1966: 393) curiosidade diferentes. Na primeira obra, uma curiosidade geográfica e astronômica dos navegantes portugueses, apresentando uma lição de mecânica celeste e de geografia universal. Em termos de lógica narrativa, a máquina é o artifício que permite inscrever no âmbito do poema as conquistas futuras dos portugueses, indicadas no discurso profético de Tétis, a partir do globo mágico. Já na segunda, ao contrário, a máquina se propõe a satisfazer uma curiosidade humana e filosófica que lhe havia sido negada antes. Trata-se de uma máquina ontológica, que proporciona o conhecimento da vida e do mistério do ser.

No poema de Drummond, a revelação da máquina constitui não um episódio, como nos Lusíadas, mas o elemento estruturador central. Afastando-se mais da epopéia lusa, ele inverte o tratamento da temática: àqueles a quem foi anteriormente dado o conhecimento do engenho divino, o prêmio foi recebido com satisfação, mas o viajante drummondiano recusa a oferta ao ser tentado. Outra diferença básica encontra-se na configuração do maravilhoso. O plano ficcional d´Os Lusíadas se estrutura a partir da intervenção dos deuses pagãos no decorrer da viagem dos portugueses, porém esse maravilhoso pagão está subordinado à ordenação cristã do mundo. Já em Drummond a máquina, pertencente a um plano extraterreno, é questionada pelo viajante, que, por não acreditar em auxílios superiores, rejeita os conhecimentos por ela oferecidos, negando com isso a possibilidade de qualquer recurso à transcendência. Outro ponto de diferença está no fato de a máquina ser apresentada, no poema luso, através da intervenção de Tétis, enquanto no poema drummondiano é a própria máquina que se revela diretamente ao observador. Nessa revelação, uma semelhança: o recurso de sedução da máquina, nos dois casos, se apóia em um imperativo apelo visual. No primeiro, através da repetição anafórica constante dos verbos “olha” e “vê”; no segundo, como vimos, pelo emprego de verbos pertences ao mesmo campo semântico: “olha”, “repara”, “ausculta”, “vê”, “contempla”.

Por fim, destaque-se o diálogo do texto em foco com outros poemas do autor. A situação narrativa de “A máquina do mundo” é análoga à de “No meio do caminho” (Andrade, 1973: 12), “Carrego comigo” (Andrade, 1973: 79) e “O enigma” (idem, 162). A propósito de tal analogia, Silviano Santiago já observou “uma reincidência do tema no tempo, onde se sobressai a evolução de um símbolo: um objeto (pedra, embrulho e coisa) que de repente brota, não se sabe nem de onde nem para quê, e que, intrigante, intercepta o caminho e os passos do poeta” (1966: 389). Esse objeto se oferece a ele, instigando a sua curiosidade, revelando-se como um enigma a ser decifrado. E, como enigma, é obscuro, pois “zomba da tentativa de interpretação” (Andrade, 1973: 162).

Apesar de o arcabouço narrativo ser o mesmo, “A máquina do mundo” apresenta variações com relação aos textos citados. Em primeiro lugar, especifica tempo e local em que se dá o encontro com o objeto, ao contrário do que ocorre nos outros poemas, em que as circunstâncias são deixadas em suspense. Em todos eles o objeto se oferece, mas, contrastando com os objetos anteriores, que permaneciam fechados e herméticos, impossibilitando a sua compreensão, a máquina agora se abre, convidando o caminhante a penetrar em seu interior e conhecer “a total explicação da vida” (v. 43). A capital diferença é que agora o eu não aceita a “coisa oferta”, não se mostra curioso face à tentativa de revelação do enigma, que tanto o intrigara anteriormente. Nessa perspectiva, aceitar a oferta da máquina seria negar a autonomia do pensamento, transferir para um objeto mágico a solução de suas inquietações humanas, demasiado humanas.

Nesse viés comparativo, torna-se interessante confrontar a imagem da máquina do mundo plasmada em “Elegia 1938” (Andrade, 1973: 59) - “Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina/ e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis mistérios” - com a que aparece no poema em questão: “e a máquina do mundo, repelida, se foi miudamente recompondo”. Cumpre aqui notar a oposição dos vocábulos “grande” e “miudamente”, ambos aplicados à máquina e que refletem diferentes configurações do lirismo do autor, que Antônio Carlos Secchin (2003: 168) denominou de “sucessivos movimentos de sístoles e diástoles, de expansões e retrações”. No primeiro poema, que significativamente pertence ao livro Sentimento do mundo, o poeta sente-se pequeno diante da grandeza e dos mistérios do universo, que superam o seu drama existencial. Já o segundo situa-se em um momento diferente da sua criação, em que sujeito e objeto se encontram no mesmo plano. Tal fusão eu/mundo já está indiciada no início do poema - como observamos - através da escuridão, vinda do monte e do seu próprio ser desenganado (v. 8-9), e do som do sino rouco que se mistura ao som de seus sapatos (v. 3-4).

Sintetizando, pode-se dizer que “A máquina do mundo” reflete não um pessimismo epistemológico, mas uma negação do conhecimento gratuito, que se oferece sem ter sido buscado. Reflete também um humanismo tipicamente moderno, com sua recusa de uma realidade sobrenatural, de soluções exteriores ao próprio homem. Por fim, esclarece-se não o enigma, mas a sua condição básica de existência: o enigma deve permanecer enquanto tal, pois não é passível de solução que não dependa de uma intervenção sobre-humana.

Minhas retinas tão fatigadas apenas apreenderam de esguelha o inusitado acontecimento: no meio do caminho tinha uma máquina, tinha uma máquina no meio do caminho. Para concluir, citarei um verso do poema “Manual da máquina CDA”, de Armando Freitas Filho, que sintetiza com precisão o núcleo desse maquinismo aqui examinado: “A máquina é de pedra e pensamento” (2003: 63).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.

BRAYER, Sonia (org.). Carlos Drummond de Andrade: Fortuna crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.

CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Porto: Porto Editora, [s/d.].

CURTIUS, Ernst. European literature and the Latin Middle Ages. New Jersey: Princeton University Press, 1973.

DANTE. A Divina Comédia. São Paulo: Editora 34, 2001.

FREITAS FILHO, Armando. Máquina de escrever: poesia reunida e revista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

HOUAISS, Antonio. Drummond: mais seis poetas e um problema. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

MERQUIOR, José Guilherme. Verso universo em Drummond. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.

SANT´ANNA, Affonso R. de. Carlos Drummond de Andrade: análise da obra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

SANTIAGO, Silviano. “Camões e Drummond: a máquina do mundo”. Hispania (3), september 1966, v. XLIX.

SECCHIN, Antonio C. Drummond: a infância da poesia. Escritos sobre poesia e alguma ficção. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003.

TELES, Gilberto M. Camões e a poesia brasileira. São Paulo: Quíron, 1976.

Fonte: http://www.filologia.org.br/viiicnlf/anais/caderno11-09.html

IMPORTANTE!

o Poema A MÁQUINA DO MUNDOfoi escolhido como o melhor poema brasileiro de todos os tempos por um grupo significativo de escritores e críticos, a pedido do caderno “MAIS” (edição de 02-01-2000), publicado aos domingos pelo jornal “Folha de São Paulo”. Publicado originalmente no livro “Claro Enigma”, o texto acima foi extraído do livro “Nova Reunião”, José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1985, pág. 300.

FONTE: http://www.releituras.com/drummond_amaquina.asp

AS MENINAS – LYGIA FAGUNDES TELES - Resumo sobre a obra


O livro narra a história de três universitárias de condição social e origens diversificadas, que se conhecem em um pensionato de freiras na cidade de São Paulo, tornam-se muito amigas, apesar das diferenças de valores e personalidades, convivem durante algum tempo, compartilham seus dramas e sonhos, ajudam-se nos momentos difíceis e terminam por separar-se definitivamente. O encanto e a dificuldade aparente da leitura repousam no foco narrativo cambiante: Lorena Vaz Leme, Ana Clara Conceição e Lia de Melo Schultz contam a própria história através do fluxo de consciência, misturando suas falas, ações, lembranças e críticas recíprocas. Depois dessa surpresa inicial, o leitor acaba por identificar o estilo de cada personagem e sente-se desafiado a desvendar o universo interior das três "meninas"- uma paulista quatrocentona, uma baiana "terrorista" e uma modelo de moral "duvidosa" e viciada em drogas.

Os capítulos não têm nome, mas números:

"Um" - Lorena Vaz Leme divaga em seu quarto dourado e rosa - com cozinha, geladeira, banheira etc - no pensionato Nossa Senhora de Fátima: pensa na amiga Lia de Melo Schultz, que tem pretensões a escritora e é militante política; no gato Astronauta, que cresceu e abandonou-a; em Che Guevara, que foi líder de toda uma geração; em M.N., homem misterioso que lhe desperta desejos eróticos, em Jesus Cristo, a quem dedica a música de Jimi Hendrix; e na morte desse roqueiro e de Rômulo, seu irmãozinho querido. Lia aparece para pedir-lhe o carro de "mãezinha" emprestado, e enquanto tomam o chá especial de Lorena, conversam e divagam sobre tolices e sobres coisas sérias, concomitantemente a greve na faculdade; a prisão de Miguel, namorado de Lia e militante político também; na alienação da burguesia acomodada; na repressão militar, nos amigos que estão presos e sendo torturados. Lorena lembra a morte traumática de Rômulo e sua agonia nos braços da mãe, vitimado por um tiro acidental dado pelo outro irmão, Remo.

Da fuga deste para o exterior através da Diplomacia, dos freqüentes presentes que ele envia a ela (sinos, lenços, roupas, comida...). Mistura a esses pensamentos a figura do médico Marcus Nemésios (o M.N.), casado e bem mais velho, de quem ela sonha receber amor, carinho e proteção (Aliás, passa o livro todo aguardando um telefonema dele, que nunca se concretiza); evoca ainda a figura de Ana Clara, suas origens "suspeitas", no excesso de tranqüilizantes que consome; pensa na própria adolescência, ao piano, no gostoso convívio familiar, nos banhos de banheira, na decisão de morar no pensionato, no aluguel e decoração do quarto por Mieux, o atual namorado da mãe. Lia fala sobre o livro que escrevera e acabara por rasgar. Criticam Ana Clara e o namorado Max, traficante que a viciou em drogas, e o provável e desconhecido noivo rico com quem ela pretende se casar para "sair do buraco", após plástica restauradora da virgindade, "bancada" por Lorena. Lia pede várias vezes o carro emprestado, e um pouco de "oriehnid" (dinheiro "ao contrário", para dar sorte) para o "aparelho"(= grupo de resistência à ditadura militar). Apesar de temer envolvimentos com o grupo e suas conseqüências, Lorena é incapaz de dizer "não" aos pedidos da (s) amiga (s).

"Dois" - Ana Clara e Max drogam-se na cama e deliram.

Ela sente-se travada, bloqueada, apesar das sessões de terapia - ela odeia o analista. Acha-se bonita (modelo, 1,77 m) e carente - a mãe, prostituta, nunca lhe deu atenção. Lembra-se do Dr. Algodãozinho, que deixava seus dentes apodrecerem para abusar sexualmente dela e da mãe, em sua cadeira de dentista. Pensa no quanto ama Max, mas que em janeiro casa-se com o noivo rico e resolve seus problemas. Sente ódio de Deus - e de negros. Resgata a infância carente, repleta de ruídos (ratos, baratas) e cheiros, nos prédios em construção, onde vivia com a mãe e os sucessivos amantes.Também evoca detalhes da vida das amigas Lia e Lorena. Max também delira. Reza. Teve educação esmerada (fala francês, é fino) mas empobreceu e tornou-se traficante. Tem uma irmã que sumiu com as jóias da família e encontra-se internada em sanatório. Ana e Max se amam, mas seu relacionamento é difícil e complicado.

"Três" - Lorena reflete sobre a violência do mundo; assaltos a bancos; a morte de Rômulo; a profissão de Remo propiciando sua "fuga" para o exterior. Gostaria de poder alienar-se da "máquina desse mundo" violento (intertextualidade com o texto "A Máquina do mundo", de Carlos Drummond de Andrade), como uma ostra dentro de sua concha dourada (= seu quarto - refúgio).

Rememora a chegada de Lia e A. Clara e a "invasão" das duas à sua privacidade, a amizade das três, apesar das personalidades opostas. Miúda e magra, mostra certa inveja da beleza de Ana Clara, apesar da diferença cultural... Através da visão de Lorena, conhecemos um pouco mais sobre as duas amigas: Lia de Melo Schultz tem um "pé" baiano, da mãe Diú (D. Dionísia) e outro berlinense, do pai seu Pô (Herr Paul, ex-oficial nazista). Herdou do pai o vigor germânico; da mãe, as "proporções gloriosas e a cabeleira de sol negro" e o açúcar da voz. É uma "mulher-hino", enquanto Lorena vê-se como uma civilizada, requintada "balada medieval" (ou "Magnólia desmaiada", para os colegas da Faculdade de Direito). Ana Clara "arrombou" a privacidade de Lorena, obrigando-a a verdadeiros exercícios de caridade cristã: mexe em tudo, nos livros, nos objetos pessoais. Tem olhos verdes, é modelo, linda, mas "de cuca embrulhada", deprimida e deprimente, juntadíssima, afetadíssima, mentirosíssima - "ni ange ni bête" - (nem anjo, nem demônio). Envolvida com sexo e drogas. Enquanto lancha ao sol, Lorena recorda o aborto de Aninha, resgatando a fábula da formiga e da cigarra (inconsciente, bagunceira, irresponsável), com quem compara a amiga.

Recebe carta de Remo e pensa na morte de Rômulo. Filosofa sobre o lado omisso das relações humanas. Sonha em casar-se com M.N., pois sente-se frágil, insegura, precisando de um homem em tempo integral. Ao voltar para o quarto, pensa no colega Fabrízio, na noite chuvosa em que ele veio estudar mas preferiu envolvê-la nos braços, ameaçando sua virgindade; na falta de luz e subseqüente chegada de Lia, estragando o momento mágico com suas alpargatas molhadas e suas pesquisas sobre a vida das prostitutas, sua obsessão por Miguel. Lia sai, mas chega Ana Clara, e "se instala". Fim da noite para Fabrízio e Lorena. No dia seguinte, conheceu o Dr. M.N. na sua Faculdade e ganhou carona. Passa a viver aguardando seu telefonema, fantasiando um amor edipiano.

"Quatro" - Max delira na cama. Gosta de Chopin, de Renoir. Conversa com a Coelha (A. Clara) sobre a riqueza passada, as viagens. Ana compara os diferentes níveis de artistas abstratos e reclama de estar lúcida - teria tomado aspirina? Lembra o passado de miséria e sonha com o futuro promissor como psicóloga de ricaços - "Nessa cidade as pessoas não se preocupam mais com nome, mas com o saco de ouro" (de que adianta o nome Vaz Leme de Lorena, descendente de bandeirantes?).

Quer esquecer a mãe, os amantes, Jorge, Aldo, Sérgio... e o suicídio com formicida. Lembra-se da amiga Adriana, feia e vesga, mas com casa na praia, onde A. Clara tentou lavar a memória do passado num banho de mar. Max desperta e os dois deliram juntos. Ela está grávida e quer abortar. Ele deseja o filho, cuja voz diz ter ouvido. Vão ficar ricos e fazer cruzeiros pelo mundo. Ela é a gata borralheira, que tem encontro marcado com o noivo, que já deve estar inquieto com o atraso.

"Cinco" - Lorena aguarda o telefonema de M.N., como sempre. Pensa em arte, em literatura (Dante, Beatriz) , em música (jazz), em cheiros (incenso); em morte (Rômulo); na mãe e no carro (teme que Lia seja metralhada dentro dele). Gostaria de poder sair de moto com Fabrízio, um cinema, um jantar... mas acha que ele deve estar na faculdade, incitando a greve e namorando uma poetazinha que resolveu seduzi-lo. Recebe a visita da irmã Bula e desconfia que esta é a autora das cartas anônimas, que falam coisas horríveis sobre as meninas e as freiras, para Madre Alix, a superiora.

Enquanto serve licor e biscoito para a freira, relembra a morte de Rômulo, as manchetes nos jornais; pensa em Lia, em Simone de Beauvoir (escritora francesa), em segundo e terceiro sexos, em M.N., em Che Guevara, em morrer e renascer (segundo S. Marcos, "é necessário nascer de novo"). Recupera a teoria da amiga "terrorista" sobre a perda de pureza do baiano e do índio, e cita Gonçalves Dias. Coloca um Noturno de Chopin e serve constantemente vinho à freirinha. Quando tampa a garrafa, pensa na ferida de Rômulo, na fuga de Remo. Despede-se da Irmã Bula e de sua velhice sem sentido.

"Seis" - Na sala imunda e mal iluminada onde montaram o "aparelho", Lia ("Rosa de Luxemburgo") e Pedro começam a separar material para o jornal. Conversam sobre experiências homossexuais; Jango; o nazismo; conceito de santidade; sobre Che Guevara; Martin Luther King (líder negro americano), engajamento político-social, atuação da Igreja progressista, casamento de padres, amor... Sai para uma operação noturna com o Bugre, que lhe conta sobre a próxima deportação de Miguel para a Argélia. De volta ao pensionato, feliz, conversa com Madre Alix: fala de seu amor pela família, do passado com saudade, do presente (fases da vida!...); de A. Clara, Max e seu envolvimento com drogas; na sua pretensa vocação para escritora; na desilusão com Miguel (muito cerebral) e Lorena (muito sofisticada).

Madre Alix quer ajudá-las, mas sente-se impotente e teme por seu futuro. Sugere uma epígrafe para o livro de Lia e que serve para a vida das duas: "Sai da tua terra e da tua parentela e da casa de teu pai e vem para a terra que eu te mostrarei"(Gênesis).

"Sete" - Irmã Clotilde leva frutas para Lorena, que se exercita na bicicleta. Falam sobre as duas Santas Teresas; sobre Tolstói; sobre homossexualismo (comenta-se no pensionato que I. Clotilde é lésbica); sobre beleza, ideais, filosofias de vida. A freira vai lavar as mãos e volta criticando a cor, a saúde e a alimentação das três amigas. Lorena anseia por beleza e um telefonema... Quer ficar só, mas a freira se demora na visita e no exame do quarto, dos animais, dos livros da moça. Esta lê um pedaço de um livro de Direito, cita frases em latim, enquanto pensa sobre o lado oculto das pessoas: a vida é um jogo de espelhos, e Lorena tem sede de autenticidade... Lia chega, a freira se vai. Devolve a chave do carro, conta sobre a viagem à Argélia, brinca de entrevistar Lorena (os assuntos de sempre: virgindade, casamento, M.N., Fabrízio, Pedro) e diz que esta é edipiana. Ambas mostram-se preocupadas com a gravidez de Ana "Turva" e sua dependência.

Divertem-se no jardim e despedem-se no portão. Lia pede roupas para os "revolucionários". Lorena fica pensando na iniciação sexual das amigas e imagina como será sua "primeira vez"(M.N. é ginecologista, um "gentleman").

"Oito" - Ana Clara e Max acordam e conversam: ele e Lorena são "aristocratas", têm álbum de retratos... Os de Lorena estão na garagem do pensionato. Criticam o amante jovem de "mãezinha", Mieux. Max vai até a geladeira, come e volta a dormir. Ana pensa na desculpa que vai inventar para o noivo aceitar seu sumiço. Arruma-se e sai. Chove. São quase 11 h da noite. Não consegue táxi e aceita carona de um industrial em um Mercedes. Foge dele e refugia-se em um bar, onde encontra um velhote estranho que a convida para seu apartamento. Confundindo-o com "um pai" que nunca teve, segue-o. Apartamento de boêmio - retratos na parede, vitrola de corda, discos de tangos. Ana deita-se na cama e dorme, enquanto ele lê para ela textos sobre Napoleão, Rodolfo Valentino e tem orgasmo. Diz que o platonismo amoroso é a forma mais sutil e temível da paixão infinita e insaciável.

"Nove" - Na banheira, Lorena filosofa sobre "ser" ou "estar" no mundo - na desintegração do ser humano na cidade grande, no papel do filósofo, do advogado, do médico, do psiquiatra.

Sente todos os sintomas de todas as doenças mentais, apesar de charmosa e inteligente. Lembra-se da fazenda, das procissões em que se vestia de anjo. Rememora o primeiro encontro com M.N. e imagina as reações de mãezinha quando lhe contar sobre ele. Sai do banho emocionada e veste um robe. Chega o colega Guga, que lhe conta ter abandonado a família, a escola e estar vivendo em um porão, numa comunidade. Escandalizada com sua sujeira, Lorena corta-lhe as unhas, alerta-o sobre promiscuidade e lê para ele uma carta de M.N. Guga se excita e tenta amá-la. Ela quase cede, mas reage e ele se vai. Chega Lia. Conversam sobre filosofia, Lacan, auto-identificação, transferência de afetos. Lia quer provar que M.N. está mais para pai que para namorado, mas Lorena não admite. Falam sobre o telefonema de Herr Pô e da promessa de ajuda em dinheiro para a viagem. Lorena entrega a Lia um cheque em branco e pede-lhe para usar uma cruz na corrente, enquanto filosofa sobre Deus, religião, fé. Lia sai rindo. Lorena faz caretas.

"Dez" - Lia pega carona com o motorista de mãezinha de Lorena e vai visitá-la. No caminho, consegue fundir a cabeça do senhor com seu discurso sobre família e liberdade. Recebida no hall pelo mordomo, fuma, examina os objetos e tapetes luxuosos, enquanto imagina sua viagem, a desunião da esquerda; vê-se na Argélia escrevendo seu diário e exaltando a Pátria. Mãezinha chora, na cama, a morte do psiquiatra Dr. Francis. Desajeitada, Lia tenta consolá-la e ouve suas lamúrias sobre a diferença de idade entre ela e Mieux, a impossibilidade de acompanhá-lo em seus programas, a dificuldade em aceitar a velhice e a morte. Lia lembra-se de sua família (tão equilibrada!) com saudade e amor. Mãezinha pergunta sobre os namoros de Lorena e Lia (acha-a masculinizada) e quer trazer a filha de volta à casa. Conta uma versão totalmente diferente sobre a morte de Rômulo (falência cardíaca, ainda bebê). Lia sente-se nauseada e pensa em ver o álbum de fotos na garagem: acha que mãezinha está escamoteando a tragédia por auto-defesa. Ganha roupas e mala para a viagem.

"Onze" - Tarde da noite. Ana Clara chega transtornada ao quarto de Lorena, que está estudando para a prova no dia seguinte (a greve terminara). Entra arrastada, gritando de dor no peito e imunda. Lorena coloca-a na banheira - seu corpo está cheio de nódoas roxas e sofre alucinações com formigas, baratas, Deus e Max.

Pede uísque e a bolsa. Delira. Lorena pensa no abismo entre o ser e o estar, num futuro feliz no campo, fora de sua casca. As novelas da vizinhança encobrem os ruídos e finalmente A. Clara adormece. Lorena toma chá. Finalmente Lia chega para preparar as malas (a viagem será na manhã seguinte) e Lorena vai até seu quarto. Conversam muito - sabem que estão se despedindo - e Lia conta-lhe que Guga virá procurá-la. Não vêem futuro na relação com M.N., que jamais abandonará a família, pois a "dor do remorso dói mais que a dor física"(Tolstói). Ao voltar para o quarto, Lorena tem um choque: A. Clara está morta.

"Doze" - Lia corre aos acenos da amiga. Ao entrar, encontra Lorena massageando o peito de A. Clara, tentando revivê-la, enquanto reza. Lia pensa em chamar o pronto-socorro, em acordar todo mundo, em que poderia ter feito mais pela amiga, além dos "discursos". A bolsa de A. Clara está aberta: talvez dali ela tirara a própria morte. Lorena tem idéias e age: encomenda o corpo, reza em latim, veste e pinta A. Clara como se esta fosse a uma festa. Elimina todas as pistas comprometedoras para Aninha e Max, além das freiras do pensionato.

As duas amigas carregam A. Clara através da noite providencialmente nebulosa e abandonam o corpo em um banco em uma linda praça do bairro. Voltam para o pensionato e separam-se: cada uma vai viver a própria vida. Lia no exílio. Lorena de volta para a casa de mãezinha, deixando sua concha para a futura hóspede, que vem do Pará.

A ação do livro é prevalentemente interiorizada. Quase nada acontece na realidade exterior; a vidinha pacata e rotineira no pensionato, as conversas intermináveis, os estudos, as visitas das personagens ao redor do quarto de Lorena - centro daquele microcosmo -, poucos momentos na faculdade e no "aparelho"; as atitudes contraditórias de Ana Clara e sua morte; a solução dada pelas amigas para se livrarem de um cadáver comprometedor. Tudo se passa no âmbito da memória, enquanto as meninas resolvem o passado e evocam suas experiências em busca de auto-conhecimento, de solução para seus traumas e conflitos interiores, para a exorcização de seus "fantasmas". Personagens: Lorena Vaz Leme, filha de fazendeiros, culta, fina, aristocrática, descende de bandeirantes. É aluna na Faculdade de Direito e bastante estudiosa: cita com freqüência passagens da Bíblia, frases em latim, em francês, em espanhol, de filósofos variados, escritores e músicos.

Demonstra cultura e educação esmerada, onde se fundem harmoniosamente o erudito e o popular. Assistiu impotente à derrocada da própria família e evoca freqüentemente esse passado, onde contrapõe os momentos felizes da infância, na fazenda, à morte acidental do irmão e a subseqüente desagregação do núcleo familiar - a fazenda vendida, o pai internado em sanatório, o irmão traumatizado pela culpa, a mãe vivendo de fantasias, terapias e falsas ilusões. Lorena tenta "equilibrar-se" fechando-se em uma concha dourada dentro do pensionato de freiras, onde pratica ginástica, faz chá, recebe cartas e presentes do irmão, visitas freqüentes de colegas, e de onde ajuda as amigas. Toma sol, lê, filosofa, mas pouco age. Segundo Lia, trata-se de uma burguesa alienada, apesar da bondade e do carinho com que recebe e ajuda a todos. Mas o mundo insiste em invadir sua privacidade - as amigas, as freiras, Fabrízio, Guga, o amor impossível pelo médico mais velho colocam-na em frequente conflito com o mundo exterior. Procurando viver de sonhos, perde várias oportunidades de realizar-se afetivamente e ser feliz. No entanto, diante da morte de A. Clara, consegue definir-se e agir positivamente, encontrando, por um lado, solução para o problema imediato; e, de outro, um possível desfecho para sua alienação: voltará para a casa da mãe, acabará por perceber a impossibilidade de um compromisso com M.N. e se abrirá para o amor de Guga, enquanto se resolve a enfrentar o mundo e a deixar sua "concha" definitivamente.

Lia de Melo Schultz serve como contraponto à "finesse" de Lorena: veste-se mal, usa alpargatas, não gosta muito de banho, não cuida da aparência. Veio da Bahia para fugir da mãe superprotetora e do pai com um passado misterioso de ex-oficial nazista. Matricula-se no curso de Ciências Sociais (foco de agitações estudantis na década de 60), onde se envolve com um grupo militante da esquerda e apaixona-se por Miguel, que acaba preso. Sua preocupação consiste em angariar dinheiro e roupas para o "aparelho", e está sempre discursando contra a alienação da burguesia, das amigas, e a pobreza do Nordeste. Seu equilíbrio repousa sobre dois referenciais: em seu engajamento político (doação de amor aos amigos e à liberdade da Pátria) e na segurança que encontra no amor de Miguel e no apoio da família, que, mesmo à distância, protege-a e dispõe-se a ajudá-la em sua fuga para o exterior. Escolhe seu próprio caminho e resolve-se bem. Ana Clara Conceição apresenta o temperamento mais problemático e a personalidade mais inconsistente das três, apesar do fascínio que a força de suas evocações exerce sobre o leitor, as amigas e Madre Alix, principalmente. Filha de pai desconhecido, amargou uma infância carente, junto a uma mãe prostituída e constantemente machucada pelos sucessivos companheiros, um dos quais a induz ao suicídio pela ingestão de formicida.

Ana foi seduzida por um dentista, que abusa sexualmente da mãe e da filha. Traumatizada, não consegue encontrar prazer nos seus relacionamentos amorosos. Permanece quase o livro todo na cama com o namorado Max, traficante que a viciou em drogas e, embora conversem muito, seu discurso aparece truncado - amam-se, mas não conseguem ser felizes. Sob o efeito das drogas, suas evocações são basicamente sinestésicas: ruídos (o roque-roque dos ratos e o barulho das baratas, nas construções), cheiros (do consultório do dentista, da bebida, do mar, do corpo de Max...), sensações variadas de frio e de calor entrecruzam-se enquanto ela desnuda seus traumas sem qualquer pudor e, fugindo à realidade, adia todas as soluções para "o ano que vem". Só que o peso da memória é mais forte: nem a aspirina; nem a ilusão de um noivo rico; nem a probabilidade da plástica restauradora da virgindade; nem a perspectiva de ascensão social através da Faculdade de Psicologia, da carreira de modelo, do dinheiro que conseguirá na clínica para a burguesia; nem o amor e os conselhos de Madre Alix e das amigas conseguem salvá-la.

Seu fim é trágico: morre de overdose no quarto de Lorena, e, vestida e enfeitada, cumpre seu destino num banco de praça, sem prejudicar aquelas pessoas que conseguiram dar-lhe um pouco de afeto, mas não a paz de que tanto necessitava.

Tempo: Subjaz à narrativa uma seqüência cronológica pouco marcada de alguns dias ou poucas semanas: o tempo é voluntariamente vago e difícil de precisar. O que prevalece é o tempo psicológico, pois tudo acontece através do entrecruzar da memória, da evocação do passado, da mistura com algumas ações no presente. Alguns fatos permitem a localização da obra no final dos anos 60, pois evocam as agitações sociais, as greves universitárias, a prisão e a tortura de militantes políticos sob o enrijecimento da ditadura militar, o crescimento agressivo da megalópole que tritura o jovem e esmaga sua individualidade, alienando-o, censurando-o e dificultando-lhe a busca de caminhos. Passado e presente fundem-se e nos traumas da memória encontram-se as explicações para os problemas existenciais das três meninas - símbolos de toda uma geração massacrada e alienada por forças do passado e das circunstâncias.

Espaço:

Oprimidas pela cidade grande e sua violência, as três meninas refugiam-se no Pensionato N. Senhora de Fátima, na região central de São Paulo. O quarto-concha de Lorena constitui-se no refúgio para onde as pessoas convergem em busca de conforto, de carinho, de segurança, de afeto e compreensão - um tipo de oásis dentro de um mundo desorganizado, caótico e extremamente ameaçador, onde "Deus vomita os mortos".

Foco Narrativo: O foco narrativo em primeira pessoa é manipulado pela Autora de forma magistralmente cambiante: ele se desloca constantemente (e inesperadamente!) para o fluxo de consciência das três amigas, que se entrevistam, que se apresentam umas às outras e ao leitor, que refletem continuamente sobre si mesmas e umas sobre as outras, arrastando-nos nessas freqüentes invasões à privacidade de A. Clara, Lorena e Lião, que se vão desnudando paulatinamente diante de nós.

Existe uma dificuldade inicial para a leitura até a identificação do estilo peculiar de cada personagem, pois cada uma delas se exprime dentro de seu "dialeto" coloquial - o discurso mais elaborado e culto de Lorena, o regionalismo politicamente engajado de Lião e o pensamento confuso e truncado de Ana "Turva". Superada essa dificuldade, o leitor mergulha de corpo e alma no universo fantástico dessas três meninas encantadoras, representantes autênticas daquele que foi um dos períodos mais importantes e difíceis para a emancipação da mulher, para a liberdade de pensamento e para a realização individual dentro de um universo politicamente conturbado. O romance As Meninas oferece-nos, de um lado, um painel saboroso das vivências de três pessoas em busca de si mesmas; de outro, uma amostra dos problemas cruciais que agitaram a juventude durante um dos períodos mais conturbados da história do Brasil, que Lygia Fagundes Telles teve a ousadia e a coragem de denunciar.

http://www.resumosdelivros.com.br/l/lygia-fagundes-telles/as-meninas/

ESTA OBRA VAI MUITO ALÉM DA OBRIGATORIEDADE DO VESTIBULAR; ELA CONDUZ,ATRAVÉS DE UMA LINGUAGEM DELICIOSA, O NOSSO OLHAR A VALORES HUMANOS,COMO O RESPEITO ÀS DIFERENÇAS, A CORAGEM E O ENTUSIASMO QUE SUPLANTAM O MEDO, O TRAUMA, A INDIFERENÇA, A TRISTEZA E A MORTE.

SEJA LIVRE! LEIA!

SAUDAÇÕES LITERÁRIAS!

LISTA DE OBRAS E FILMES DO VESTIBULAR 2010 UFBA E UNEB

UFBA
Estão sendo indicados os seguintes autores e obras literárias, para os Vestibulares de 2010 e 2011:

1ª Fase ou Fase única

· Joaquim Manoel de Macedo - As vítimas algozes

· Eça de Queirós - A correspondência de Fradique Mendes
· Graciliano Ramos - Vidas secas

· Antônio Callado - Quarup
· Cadernos Negros; Os melhores poemas (antologia publicada pelo Fundo Nacional de Cultura/MinC)
· José de Alencar - Senhora

2ª Fase (CPL)

· Joaquim Manoel de Macedo - As vítimas algozes
· Eça de Queirós - A correspondência de Fradique Mendes
· Graciliano Ramos - Vidas secas
· Adonias Filho - O largo da Palma
· Antônio Callado - Quarup
· José de Alencar - Senhora

· Mário de Andrade - Macunaíma

· Cadernos Negros; Os melhores poemas (antologia publicada pelo Fundo Nacional de Cultura/MinC)
· Mia Couto - O último vôo do flamingo
· Italo Moriconi (org) - Os cem melhores poemas brasileiros do século.

Filmes (apenas 2ª fase - CPL):

· A invenção do Brasil - Guel Arraes
· Cidade de Deus - Fernando Meireles
· Deus e o diabo na terra do sol - Glauber Rocha
· O baile perfumado - Lírio Ferreira e Paulo Caldas
· Diários de motocicleta - Walter Salles Jr.
· O homem que copiava - Jorge Furtado
· O que é isto, companheiro? - Bruno Barreto
· Adeus, Lenin - Wolfganger Becker
· Faça a coisa certa - Spike Lee
· O crime do padre Amaro - Carlos Carrera

UNEB

As Obras Literárias sugeridas para o Vestibular 2010 têm por finalidade a contextualização dos estilos de época e orientação de leitura dos candidatos.

São elas:

Obra

Autor

Editora

Tenda dos Milagres

Jorge Amado

Record

As Meninas

Lygia Fagundes Teles

Rocco

Bagagem

Adélia Prado

Record

Teoria do Medalhão e o Homem que sabia Javanês

Machado de Assis

Lima Barreto

Nova Aguilar

Essa Terra

Antônio Torres

Record Editora

Cadernos Negros – Poesia (Os melhores poemas )

Antologia Publicada pelo Fundo Nacional de Cultura/Minc

Anita Garibald

Leia! Vale à pena!

9ª BIENAL DO LIVRO BAHIA 2009

Caros amigos

A Bienal já começou.
é simplesmente imperdível.
Garantia de diversão, cultura e encontro.
Cá entre nós, já faz parte da nossa programação de encontro entre amigos.
Então, todos do Quilombo, do Gabriel Arcanjo, do Conselho Pastoral da Pesca e demais amigos, nos veremos lá às 14 horas, no dia 21/04. Êta feriado gostoso!
Clik aqui para acessar o site da Bienal.
Quem for, deixa um recadinho.
Saudações Literárias!

sábado, 11 de abril de 2009

Leitura - Bagagem- Adélia Prado


(imagem: Colheita de Maçãs, 1890 - Carl Larsson)

Era um quintal ensombrado, murado alto de pedras.
As macieiras tinham maçãs temporãs, a casca vermelha
de escuríssimo vinho, o gosto caprichado das coisas
fora do seu tempo desejadas.
Ao longo do muro eram talhas de barro.
Eu comia maçãs, bebia a melhor água, sabendo
que lá fora o mundo havia parado de calor.
Depois encontrei meu pai, que me fez festa
e não estava doente e nem tinha morrido, por isso ria,
os lábios de novo e a cara circulados de sangue,
caçava o que fazer pra gastar sua alegria:
onde está meu formão, minha vara de pescar,
cadê minha binga, meu vidro de café?
Eu sempre sonho que uma coisa gera,
nunca nada está morto.
O que não parece vivo, aduba.
O que parece estático, espera.

Neste poema, Adélia mistura saudade, tristeza e alegria, ao conectar passado e presente em suas memórias de família. O ser e estar no mundo conotam sensações, sabores, ações, olhares e toques que celebram a vida. A tristeza pelos tempos ídos é amortecida pela certeza de que tudo permanece e nada morre; de que a vida se recria e reinventa a cada ciclo que se encerra.

Sobre Bagagem - Adélia Prado


LITERATURA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA
TEMAS: COTIDIANO / RELIGIOSIDADE / LEMBRANÇAS DO PASSADO / NATUREZA / AMOR
LIVRO DE POESIA – DIVIDIDO EM CINCO PARTES:
O MODO POÉTICO: Com Licença Poética / Poema com absorvência no totalmente perplexas de Guimarães Rosa) / Agora, ó José /
Leitura / No meio da noite / um salmo / Impressionista / (entre outros)
UM JEITO E AMOR: O sempre amor / A serenata / Um jeito / (entre outros)
A SARÇA ARDENTE- I:Janela / Epifania /Ensinamento / Chorinho Doce / (entre outros)
A SARÇA ARDENTE – II: Insônia / Fé / O retrato / O sonho / As mortes sucessivas / (entre outros)
ALFÂNDEGA: ( com um único poema – de mesmo nome) Alfândega

O poder Humanizador da poesia - Adéia Prado

Clic no link O poder humanizador da poesia - Adélia Prado
E baixe esta fabulosoa entrevista, onde o conceito de arte e poesia transcende a teoria dos livros e dos críticos.
Delicie-se!

Adéia Prado - Bagagem

Mais um pouquinho de Bagagem:

Antes do nome

"Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe;
os sítios escuros onde nasce o ‘de’, o ‘aliás’,
o ‘o’, o ‘porém’ e o ‘que’, esta incompreensível
muleta que me apóia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é o Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda, foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infreqüentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror. "

Este poema transcende a função metalinguística e para atingir o modo religioso, sagrado de se construir ideias, fazer poesia com toda sacralidade que está impregnada na própria vida de Adélia. Está contido na parte O MODO POÉTICO) da obra Bagagem.

Veja a seguir o que encontrei sobre a obra, em
http://www.releituras.com/aprado_bio.asp


"Em 1975, Drummond sugere a Pedro Paulo de Sena Madureira, da Editora Imago, que publique o livro de Adélia, cujos poemas lhe pareciam "fenomenais". O poeta envia os originais ao editor daquele que viria a ser Bagagem. No dia 09 de outubro, Drummond publica uma crônica no Jornal do Brasil chamando a atenção para o trabalho ainda inédito da escritora.

'Bagagem, meu primeiro livro, foi feito num entusiasmo de fundação e descoberta nesta felicidade. Emoções para mim inseparáveis da criação, ainda que nascidas, muitas vezes, do sofrimento. Descobri ainda que a experiência poética é sempre religiosa, quer nasça do impacto da leitura de um texto sagrado, de um olhar amoroso sobre você, ou de observar formigas trabalhando.'

O livro é lançado no Rio, em 1976, com a presença de Antônio Houaiss, Raquel Jardim, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Juscelino Kubitscheck, Affonso Romano de Sant'Anna, Nélida Piñon e Alphonsus de Guimaraens Filho, entre outros."

Até a próxima postagem.

BAGAGEM - ADÉLIA PRADO

Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade da alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Este poema faz parte da primeira obra publicada por Adélia Prado: Bagagem: um livro de poeisas que traz referência à sua vida, às suas memórias e reflete a sua forma ver a vida, o mundo, a condição da mulher e do homem no mundo.
Faz uma intertextualidade com o Poema de sete faces (CDA ).
Veja este poema e faça as suas comparações:

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do -bigode,

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.


Observe:
O homem, por estar numa posição cômoda de privilégios sociais, não precisa lutar para modificar-se (desdobrar-se), para impor-se. A mulher, sim, precisa e desdobra-se. É desta maneira que vem construindo um destino feliz e inteligiente.
Para o homem (Carlos Drumond de Andrade) - anjo torto: destino limitado e inexorável.
Para a mulher (Adélia Prado) - anjo esbelto: destino amplo, mutável e belo.